sexta-feira, 4 de dezembro de 2020


04 DE DEZEMBRO DE 2020
O PODER DAS PALAVRAS - 
Cláudio Moreno, escritor e professor, escreve quinzenalmente.

Querides alunes - 2

Como explicamos na coluna anterior, uma língua não é estática e imutável porque necessariamente deve espelhar as tensões e as mudanças sociais do momento. As formas de tratamento, por exemplo, foram sendo alteradas à medida que a monarquia e a nobreza eram ultrapassadas pela História, assim como a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, como vimos, fez eclodir a forma feminina dos cargos e profissões - é por isso que nosso idioma hoje tem rabinas, xeicas e toureiras, formas impensáveis há poucas décadas. Na França, por incrível que pareça, ainda há forte resistência em usar o feminino das profissões e das funções públicas, mas os teimosos levaram um rude golpe da realidade quando Marguerite Yourcenar foi eleita para a Academia Francesa em 1981, obrigando a vetusta instituição a construir o primeiro banheiro feminino em suas dependências.

Porém, invertendo a lógica do processo - confundindo causa e consequência - alguns grupos ativistas passaram a acreditar que promover outras mudanças na língua também seria uma forma de lutar pela desejada igualdade. Surgiu assim essa campanha pelo gênero neutro no Português, que, em suas linhas principais, acusa nossa língua de machista porque costuma usar o masculino como genérico (o brasileiro é brincalhão, os alunos compareceram em massa, etc.), quando mais democrático seria usar brasileire ou alunes, devidamente equipados com este E "neutro". Como eu já disse anteriormente, apesar de bem intencionada, essa proposta já nasceu morta, e vou explicar por quê.

Primeiro, talvez pela própria polissemia do vocábulo gênero, ela confunde a oposição morfológica masculino vs feminino com a oposição biológica macho vs fêmea. O gênero gramatical é uma forma de dividir os substantivos em diferentes classes, que variam de língua para língua. Há línguas com três, quatro ou mais gêneros (distinguindo o humano do não- humano, ou o animado do não- animado, ou o sagrado do profano, etc.). Nos idiomas que nasceram do Latim, como é o nosso caso, os substantivos são classificados em masculinos e femininos. Quando se refere a seres sexuados, na maioria dos casos o masculino gramatical corresponde ao macho - mas a girafa, a baleia, a anta, a criança, a pessoa, a vítima ou a testemunha são femininos gramaticais que abrangem tanto machos quanto fêmeas. 

Quando o substantivo se refere a seres inanimados, então, a distribuição é completamente aleatória (a espada e o canivete, o garfo e a faca, a colheitadeira e o trator, o lápis e a caneta). Quando o substantivo tem ambos os gêneros, isso aparece na morfologia de uma forma binária, há muito descrita por Mattoso Câmara: a marca do feminino é o A, enquanto o masculino se assinala pela ausência desse A. Sabemos que aluna, mestra e pintora são femininos porque ali está a marca; inversamente, sabemos que aluno, mestre e cantor são masculinos porque ali não está a marca. Por isso, quando quisermos nos referir a todos, homens ou mulheres, usamos o masculino (ou seja, o gênero não-marcado): "Os argentinos leem muito mais do que os brasileiros" (entenda- se: todos, eles e elas). Como se vê, o idioma não está privilegiando os machos com relação às fêmeas.

Segundo, e mais importante: pouquíssima coisa pode ser mudada deliberadamente numa língua. As sucessivas alterações na nossa ortografia deram ao leigo a sensação de que outras mudanças no idioma dependeriam de um simples decreto presidencial ou da pressão de um grupo de especialistas. Ledo engano. O significado dado às palavras, o emprego de uma forma feminina até então esquecida, o conceito de certo e errado na colocação dos pronomes, tudo são fenômenos que ocorrem lá em cima, na copa desta gigantesca árvore, eternamente agitada pelos ventos da História; contudo, quanto mais nos aproximamos do tronco e das raízes, deparamos com uma sólida estrutura que só o milenar atrito do uso pode modificar.

Este é o nosso caso: como o substantivo comanda a concordância dos vocábulos que o acompanham (artigos, adjetivos, numerais, pronomes), o emprego dessa forma agenérica acarretaria uma série de alterações obrigatórias. Ninguém, nem mesmo os seus defensores, conseguiriam falar assim espontaneamente, sem rascunho prévio escrito. Tantas seriam as decisões a tomar para cada frase proferida que, diante desta sobrecarga de sua capacidade de processamento, nenhum falante aderiria a esta prática - muito antes pelo contrário.

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CLÁUDIO MORENO

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