09
de agosto de 2014 | N° 17885
CLÁUDIA
LAITANO
O que não é
espelho
Bugsy
Malone (1976) é um filme curioso e adorável. Trata-se de uma história de
gângsteres, com um clima notadamente inspirado no clássico O Poderoso Chefão. O
fascinante nesse filme, para a menina de 10 anos que eu era na época da
estreia, é o fato de todo o elenco ser composto por crianças. Mocinhos,
bandidos, figurantes, todos tinham mais ou menos a minha idade – Jodie Foster,
na época com 13 anos, interpretava a loirinha fatal da história.
Os
carros pareciam de verdade, mas eram movidos por pedais. As armas pareciam
reais, mas quando disparadas apenas melecavam as vítimas de chantilly ou algo
parecido. Fora isso, era um filme de gângsteres com todos os clichês do gênero,
que passavam despercebidos para nós, mas divertiam os adultos. Era irresistível
porque parecia levar ao limite a fantasia de um mundo povoado apenas por
crianças – ou seja, gente como a gente. A mesma história, vivida por adultos,
provavelmente não teria qualquer interesse para o público infantil.
Esse
tipo de identificação com histórias que não são as nossas – mas que de alguma
forma nos refletem – acompanha leitores e espectadores ao longo de toda a vida.
Está presente na boa e na má ficção, no produto mais comercial e na obra de
arte. É comum nas comédias românticas mais tolas, mas não está ausente dos
clássicos. Uma moça solteira com dificuldades para achar namorado pode
relacionar-se tanto com as trapalhadas e os quilos a mais de Bridget Jones
quanto com a paixão descabelada de Anna Karenina pelo irresistível conde
Vronsky.
Volte
à última frase e repare no termo que eu usei: “relacionar-se”. A invenção de um
neologismo, em inglês “relatability”, para indicar o quanto nos identificamos
(ou não) com determinada obra, parece revelar uma expectativa muito em voga em
relação à arte, apontada pela jornalista Rebecca Mead em um artigo publicado esta
semana na revista The New Yorker, intitulado A Praga da “Relatability”. Com um
levantamento feito na ponta do lápis, a jornalista mostra como a expressão
explodiu na imprensa (e nas redes sociais) nos últimos cinco anos. Usa como
exemplo recente – e extremo – um radialista americano que tuitou que detesta
Shakespeare porque não consegue se identificar com os personagens: não haveria
“relatability” em Rei Lear ou Macbeth.
Obviamente
não há nada errado em identificar-se com a jornada de um personagem que nos
parece próximo. O problema, aponta a jornalista, é quando a “relatability”
passa a ser um critério de exclusão, tornando-nos indiferentes a tudo aquilo
que, em uma obra, não é espelho – como a crueldade épica de uma Lady Macbeth ou
a angústia famélica de um retirante de Vidas Secas. Para a autora, o narcisismo
adolescente de perseguir o espelho na ficção seria uma espécie de subproduto da
era do selfie, levando leitores e espectadores a descartar o que não lhes
oferece o conforto da própria imagem.
Enquanto
brincamos de atirar chantilly e confete uns nos outros, celebrando nossas
idiossincrasias como se não houvesse nada mais interessante no mundo, a vida
pode parecer mais fácil de entender – mas corre o risco de ficar muito mais
pobre.