sexta-feira, 19 de setembro de 2014


19 de setembro de 2014 | N° 17927
DAVID COIMBRA

Não faz diferença

É fácil resistir a tentações quando não se é tentado. Alguém já lhe ofereceu um milhão para você cometer algum deslize? Ou melhor: algum deslize seu vale um milhão?

Por isso a oposição em geral é imaculada. A oposição não sofre as tentações do poder, porque não tem poder.

É divertido ver um candidato inofensivo espinafrar um candidato cachorro grande. O candidato é inofensivo, nunca teve poder e, por ser inofensivo, nunca teve sua vida devassada, ele pode ser agressivo à vontade. Marina Silva até anteontem era inofensiva, era o São José entre a dupla Gre-Nal. Todos a achavam a bondade vinda a bailar da mata amazônica. Mas Marina cresceu, e assim tornou-se o próprio Mal.

Industriosos profissionais da difamação alheia puseram-se a trabalhar para desmoralizá-la. Lembro-me de quando o Brizola era ameaça. Conseguiram adesivar nele a imagem de ultrapassado, de político oportunista que fazia aliança com qualquer um. Brizola morreu, deixou de ser ameaça, e assim tornou-se um símbolo de esquerda lúcida e patriótica.

Será que Marina cederá às tentações se chegar ao poder? Será possível chegar ao poder no Brasil, e manter-se no poder, sem se corromper?

O PT tinha essa proposta, nos anos 80. Não tinha projeto, tinha uma única proposta, resumida em dois pontos comuns: não fazer alianças espúrias e não ceder às tentações do poder. Parece pouco, não é. Um governo ilibado, mesmo que sem imaginação, seria o suficiente para mostrar ao Brasil que a resposta à pergunta que fiz no parágrafo anterior é “sim” e, sendo “sim”, indicaria o caminho a seguir. Nenhum país do mundo foi feito só de bons governos. Ser bom ou ruim é até secundário se as regras forem cumpridas.

O problema é que, para realizar o prometido, o PT precisava chegar ao poder. Mas como? Foi feito, então, um trabalho criterioso e competente. O PT tentou e conseguiu instalar-se em quase todos os setores da sociedade organizada: nos sindicatos, na Igreja, nas universidades, em associações de bairro e de classes, em miríades de organizações não governamentais financiadas pelo governo.

Só que não foi o suficiente, o Brasil é muito variado. Então o PT cortejou os partidos mais ao centro, depois os mais à direita e até chegar aos da ponta direita. Finalmente assentado no poder, e a fim de mantê-lo, o PT consorciou-se com Collor, Renan Calheiros, Maluf, Sarney et caterva, e tudo ficou a mesma coisa, o PT era igual aos outros e não podia mais voltar atrás: havia feito alianças espúrias e cedido às tentações do poder.

Há muitos homens íntegros no PT, e eles não estão satisfeitos com isso, mas eles acreditam que, continuando no poder, podem compensar os erros do partido com ações em defesa dos menos favorecidos. Não muito diferente de Getúlio Vargas, que justificava sua ditadura com as medidas progressistas que tomou em defesa dos trabalhadores do Brasil.

Mas não é assim que funciona. A corrupção e o cinismo entortam uma nação tanto quanto a ditadura. É como um pai que sabe prover e não sabe dar o exemplo.

Os petistas dignos, que, já disse, são vários, vivem de outra ilusão justificatória: a de que existe uma disputa ideológica no Brasil. De um lado estariam os petistas com consciência social, a esquerda, e de outro os tucanos defensores do capital, a direita. Curiosamente, os tucanos dignos, que também os há, vivem de ilusão semelhante: a de que eles são a social-democracia moderna enfrentando o comunismo atrasado.

Não é nada disso. Ao fim e ao cabo, tucanos, petistas e apoiadores de Marina Silva, todos eles estão apenas lutando pelo poder, sem nenhuma consistência ideológica, sem nenhum projeto, sem nada de novo a dizer, e aquele monumento ao desperdício erguido no deserto do Planalto Central, que é Brasília, não passa de uma gigantesca agência de empregos.


Não faz diferença. Nós, aqui, brasileiros comuns, sabemos que não faz diferença. Ideologia: eles bem que queriam ter uma pra viver.