segunda-feira, 28 de maio de 2012


Eliane Brum

A imprensa que estupra

Se no passado alguém estranhasse as marcas dos presos, bastava alegar “resistência à prisão” – “explicação” até hoje amplamente usada pelas polícias para justificar a morte de suspeitos. É assim que a pena de morte – punição inexistente na legislação brasileira – tem vigorado na prática no país. Suspeitos são executados pela polícia – e a justificativa é “morto ao resistir à prisão” ou “morto em confronto” ou “morto durante troca de tiros”.

Ontem – como hoje –, na prática, o preso não tinha nenhum direito a não querer dar entrevista ou ser fotografado ou filmado. Estava implícito que, se tentasse protestar, seria agredido. Era comum os policiais levantarem a cabeça do preso para as câmeras. Tanto daqueles que não queriam ter seu rosto exposto quanto daqueles que tinham sido tão torturados que não conseguiam manter a cabeça ereta sobre o pescoço.

Esta era a cultura que imperava – e em geral as redações não estranhavam, ou quem estranhava preferia deixar por isso mesmo para não ter de se confrontar com a “naturalidade” reinante. Não me parece – pelo que assistimos nesse vídeo – que hoje a situação seja muito diferente.

No início dos anos 90, um colega de jornal, Solano Nascimento (hoje professor do curso de jornalismo da UnB), que raramente cobria a área policial, presenciou um agente dar um tapa em um preso. Vários jornalistas, de outros veículos, testemunharam a cena. Mas só ele estranhou e denunciou a violência na sua matéria. O fato – o de um jornalista ter denunciado algo que para muitos era corriqueiro – causou espanto nas redações. Ainda assim, a polícia foi obrigada a abrir uma sindicância.

Uma pesquisa realizada em 2009 por Marcos Rolim, Luiz Eduardo Soares e Silvia Ramos com profissionais de segurança pública mostrou que 20,5% dos quase 65 mil policiais que responderam ao questionário – 1 em cada 5 – afirmaram ter sofrido torturas em seu processo de formação.

O curioso é que a cultura de violência também se fazia presente na formação dos repórteres de polícia, ainda que em proporções mais amenas. Uma espécie de “batismo de sangue” (no caso, sangue alheio) era motivo de orgulho e até de certa superioridade diante dos “frouxos” de outras editorias. Posso afirmar que isso persistiu até pelo menos a década de 90 – mas há motivos para supor que ainda exista em algumas regiões do país.

Entre os jornalistas, a iniciação era feita de várias maneiras. Uma repórter contou que, em seu primeiro dia de trabalho, foi escoltada das 7h às 21h por um jornalista veterano, com um revólver calibre 38 na cintura (era a década de 80 e o “três-oitão” ainda vivia momentos de glória).

Nestas 14 horas ininterruptas, eles acompanharam todas as mortes ocorridas na cidade – não só os assassinatos, mas também os suicídios. O veterano obrigou a “foca” a examinar os cadáveres, verificar o que havia nos bolsos, apalpar os “presuntos”, como ele chamava. Ao final do processo de violação dos corpos, ela tinha de relatar o número de buracos de bala e de perfurações de faca, sob os olhos cúmplices dos policiais responsáveis pela investigação.

Nos deslocamentos entre um morto e outro, o veterano contava sobre como gostava de torturar “vagabundos” e lamentava o fim da ditadura. Quando a noite chegou, ele a levou ao plantão de polícia do pronto-socorro público. Lá ela viu uma mulher chegar gritando e chorando, com o corpo todo esfaqueado e o sangue saindo por todos os furos.

Pela mão, a mulher levava um menino com cerca de cinco ou seis anos. Quando a jovem repórter viu os olhos do menino, deu alguns passos e desmaiou no corredor do hospital. Quando acordou, descobriu que tinha urinado na roupa durante o desmaio.

O veterano a levou para casa no carro do jornal e, ao descobrir que ela morava sozinha, impôs sua autoridade para deixá-lo entrar, com a justificativa de que era sua responsabilidade profissional ter certeza de que ela, uma subordinada, ficaria bem. Enquanto a jornalista tomava banho, ele revistou a sua casa.

Nada pior aconteceu porque ela arranjou um jeito de dizer que o sogro era professor universitário e a família do namorado deveria estar preocupada com o seu atraso. Por muitos meses ela sentiu-se violentada e não conseguia dormir sozinha em casa. Trocou as fechaduras da porta, lavou todas as suas roupas, porque o veterano repórter de polícia as tinha tocado, e botou fora tudo aquilo que não era documento, inclusive seus bichos de pelúcia.

Assim eram as coisas há não tanto tempo atrás. E acredito que ainda sejam em algumas redações do país. A reportagem que gerou a polêmica não é um episódio isolado. Assim como a teia de responsáveis é ampla e não se restringe à repórter e ao apresentador. E, por fim, a realidade a que assistimos hoje é parte de um processo histórico da imprensa brasileira, com capítulos ainda obscuros.

Basta lembrar que conhecemos os nomes dos torturadores e dos legistas que assinavam os laudos falsos da ditadura, mas desconhecemos o nome dos jornalistas que foram cúmplices do regime também nos porões da repressão.

Uma linha de investigação interessante para um livro ou uma pesquisa acadêmica seria entender como a cultura da violência e a relação de promiscuidade de parte dos jornalistas de polícia com os aparatos de repressão da ditadura manteve-se e encontrou novas expressões a partir da retomada da democracia. Uma dessas expressões são os programas considerados sensacionalistas, mas com grande audiência, com reportagens como a que agora discutimos.

Estabelece-se no país a tolerância à violação dos direitos dos presos e dos pobres, mesmo na democracia – bastando apenas fazer uma careta e dizer que os programas são “sensacionalistas”. Os “esclarecidos” dizem que não assistem “a esse lixo” – e isso seria suficiente.

O “jornalismo sério” considera-se separado da ralé – e isso seria suficiente. Na prática, sabemos que, na guerra pela audiência, cada vez mais acirrada, a contaminação entre o jornalismo “sério” e o “sensacionalista” é crescente e estimulada. E, mesmo na imprensa considerada séria, parte dos jornalistas que cobrem a área, como se diz no jargão, continua “comendo na mão da polícia”. E não é uma parte tão pequena assim.

Se estamos discutindo esse episódio aqui é porque as pessoas estão usando a internet para exercer sua cidadania e se responsabilizar pela democracia, que vai muito além do voto. Usando os instrumentos da internet para exercer pressão legítima, forçando a quebra do corporativismo, o funcionamento das instituições e o cumprimento das leis. Não me parece que nos faltem leis – o que nos falta é justiça. E, para a parte mais frágil da população, acesso à Justiça.

Na semana passada, os responsáveis pela condenação e humilhação públicas de um suspeito negro, pobre e analfabeto descobriram que os jornalistas não estão acima da lei. Enfim, uma boa notícia.

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.