Eliane
Brum
A imprensa que estupra
Se
no passado alguém estranhasse as marcas dos presos, bastava alegar “resistência
à prisão” – “explicação” até hoje amplamente usada pelas polícias para
justificar a morte de suspeitos. É assim que a pena de morte – punição
inexistente na legislação brasileira – tem vigorado na prática no país.
Suspeitos são executados pela polícia – e a justificativa é “morto ao resistir
à prisão” ou “morto em confronto” ou “morto durante troca de tiros”.
Ontem
– como hoje –, na prática, o preso não tinha nenhum direito a não querer dar
entrevista ou ser fotografado ou filmado. Estava implícito que, se tentasse
protestar, seria agredido. Era comum os policiais levantarem a cabeça do preso
para as câmeras. Tanto daqueles que não queriam ter seu rosto exposto quanto
daqueles que tinham sido tão torturados que não conseguiam manter a cabeça
ereta sobre o pescoço.
Esta
era a cultura que imperava – e em geral as redações não estranhavam, ou quem
estranhava preferia deixar por isso mesmo para não ter de se confrontar com a
“naturalidade” reinante. Não me parece – pelo que assistimos nesse vídeo – que
hoje a situação seja muito diferente.
No
início dos anos 90, um colega de jornal, Solano Nascimento (hoje professor do
curso de jornalismo da UnB), que raramente cobria a área policial, presenciou
um agente dar um tapa em um preso. Vários jornalistas, de outros veículos,
testemunharam a cena. Mas só ele estranhou e denunciou a violência na sua
matéria. O fato – o de um jornalista ter denunciado algo que para muitos era
corriqueiro – causou espanto nas redações. Ainda assim, a polícia foi obrigada
a abrir uma sindicância.
Uma
pesquisa realizada em 2009 por Marcos Rolim, Luiz Eduardo Soares e Silvia Ramos
com profissionais de segurança pública mostrou que 20,5% dos quase 65 mil
policiais que responderam ao questionário – 1 em cada 5 – afirmaram ter sofrido
torturas em seu processo de formação.
O
curioso é que a cultura de violência também se fazia presente na formação dos
repórteres de polícia, ainda que em proporções mais amenas. Uma espécie de
“batismo de sangue” (no caso, sangue alheio) era motivo de orgulho e até de
certa superioridade diante dos “frouxos” de outras editorias. Posso afirmar que
isso persistiu até pelo menos a década de 90 – mas há motivos para supor que
ainda exista em algumas regiões do país.
Entre
os jornalistas, a iniciação era feita de várias maneiras. Uma repórter contou
que, em seu primeiro dia de trabalho, foi escoltada das 7h às 21h por um
jornalista veterano, com um revólver calibre 38 na cintura (era a década de 80
e o “três-oitão” ainda vivia momentos de glória).
Nestas
14 horas ininterruptas, eles acompanharam todas as mortes ocorridas na cidade –
não só os assassinatos, mas também os suicídios. O veterano obrigou a “foca” a
examinar os cadáveres, verificar o que havia nos bolsos, apalpar os
“presuntos”, como ele chamava. Ao final do processo de violação dos corpos, ela
tinha de relatar o número de buracos de bala e de perfurações de faca, sob os
olhos cúmplices dos policiais responsáveis pela investigação.
Nos
deslocamentos entre um morto e outro, o veterano contava sobre como gostava de
torturar “vagabundos” e lamentava o fim da ditadura. Quando a noite chegou, ele
a levou ao plantão de polícia do pronto-socorro público. Lá ela viu uma mulher
chegar gritando e chorando, com o corpo todo esfaqueado e o sangue saindo por
todos os furos.
Pela
mão, a mulher levava um menino com cerca de cinco ou seis anos. Quando a jovem
repórter viu os olhos do menino, deu alguns passos e desmaiou no corredor do
hospital. Quando acordou, descobriu que tinha urinado na roupa durante o
desmaio.
O
veterano a levou para casa no carro do jornal e, ao descobrir que ela morava
sozinha, impôs sua autoridade para deixá-lo entrar, com a justificativa de que
era sua responsabilidade profissional ter certeza de que ela, uma subordinada,
ficaria bem. Enquanto a jornalista tomava banho, ele revistou a sua casa.
Nada
pior aconteceu porque ela arranjou um jeito de dizer que o sogro era professor
universitário e a família do namorado deveria estar preocupada com o seu
atraso. Por muitos meses ela sentiu-se violentada e não conseguia dormir
sozinha em casa. Trocou as fechaduras da porta, lavou todas as suas roupas,
porque o veterano repórter de polícia as tinha tocado, e botou fora tudo aquilo
que não era documento, inclusive seus bichos de pelúcia.
Assim
eram as coisas há não tanto tempo atrás. E acredito que ainda sejam em algumas
redações do país. A reportagem que gerou a polêmica não é um episódio isolado.
Assim como a teia de responsáveis é ampla e não se restringe à repórter e ao
apresentador. E, por fim, a realidade a que assistimos hoje é parte de um
processo histórico da imprensa brasileira, com capítulos ainda obscuros.
Basta
lembrar que conhecemos os nomes dos torturadores e dos legistas que assinavam
os laudos falsos da ditadura, mas desconhecemos o nome dos jornalistas que
foram cúmplices do regime também nos porões da repressão.
Uma
linha de investigação interessante para um livro ou uma pesquisa acadêmica
seria entender como a cultura da violência e a relação de promiscuidade de
parte dos jornalistas de polícia com os aparatos de repressão da ditadura
manteve-se e encontrou novas expressões a partir da retomada da democracia. Uma
dessas expressões são os programas considerados sensacionalistas, mas com
grande audiência, com reportagens como a que agora discutimos.
Estabelece-se
no país a tolerância à violação dos direitos dos presos e dos pobres, mesmo na
democracia – bastando apenas fazer uma careta e dizer que os programas são
“sensacionalistas”. Os “esclarecidos” dizem que não assistem “a esse lixo” – e
isso seria suficiente.
O
“jornalismo sério” considera-se separado da ralé – e isso seria suficiente. Na
prática, sabemos que, na guerra pela audiência, cada vez mais acirrada, a
contaminação entre o jornalismo “sério” e o “sensacionalista” é crescente e
estimulada. E, mesmo na imprensa considerada séria, parte dos jornalistas que
cobrem a área, como se diz no jargão, continua “comendo na mão da polícia”. E
não é uma parte tão pequena assim.
Se
estamos discutindo esse episódio aqui é porque as pessoas estão usando a
internet para exercer sua cidadania e se responsabilizar pela democracia, que
vai muito além do voto. Usando os instrumentos da internet para exercer pressão
legítima, forçando a quebra do corporativismo, o funcionamento das instituições
e o cumprimento das leis. Não me parece que nos faltem leis – o que nos falta é
justiça. E, para a parte mais frágil da população, acesso à Justiça.
Na
semana passada, os responsáveis pela condenação e humilhação públicas de um
suspeito negro, pobre e analfabeto descobriram que os jornalistas não estão
acima da lei. Enfim, uma boa notícia.
Eliane
Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios
nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas
(LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda
(Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti
2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História
Severina e Gretchen Filme Estrada.