ELIANE
BRUM
A imprensa que estupra
A
repórter que condenou e humilhou um suspeito não é exceção. O episódio mostra a
conivência histórica entre parte da imprensa, da polícia e do sistema
penitenciário na violação dos direitos de presos pobres (ou presos e pobres)
–
Não estuprou, mas queria estuprar!
A
frase foi dita pela repórter Mirella Cunha, no programa “Brasil Urgente”, da
Band da Bahia, a um jovem de 18 anos, preso em uma delegacia desde 31 de março.
Algemado, ele diz que arrancou o celular e a corrente de ouro de uma mulher,
mas repete que não a estuprou. Na reportagem, a jornalista o chama de
“estuprador”. Pergunta se a marca que ele tem no rosto é resultado de um tiro.
Ele responde que foi espancado. A repórter não estranha que um homem detido,
sob responsabilidade do Estado, tenha marcas de tortura.
O
suspeito diz que fará todos os exames necessários para que seja provado que ele
não estuprou a mulher. Ele não sabe o nome do exame, não sabe o que é “corpo de
delito” e pronuncia uma palavra inexistente. Ela debocha e repete a pergunta
para expô-lo ao ridículo. Ele então pronuncia uma palavra semelhante à
“próstata”. A jornalista o faz repetir várias vezes o nome do exame para que
ela e os telespectadores possam rir.
Depois,
pergunta se ele gosta de fazer exame de próstata. No estúdio, o apresentador
Uziel Bueno diz: “Tá chorando? Você não fez o exame de próstata. Senão, meu
irmão, você ia chorar. É metido a estuprador, é? É metido a estuprador? É o
seguinte. Nas horas vagas eu sou urologista...”.
A
chamada da reportagem era: “Chororô na delegacia: acusado de estupro alega
inocência”. A certa altura, a jornalista olha para a câmera e diz ao
apresentador, rindo: – Depois, Uziel, você não quer que o vídeo vá pro
YouTube...
Ela
tinha razão: o vídeo foi postado no YouTube. A versão mais curta dele já foi
vista por quase 1 milhão de pessoas. Aqui neste link,
se quiser, você pode assistir a uma versão um pouco mais longa, de quase cinco
minutos.
O
vídeo foi divulgado nas redes sociais, na semana passada, com grande
repercussão e forte pressão por providências. Um grupo de jornalistas fez uma
carta aberta: “A reportagem de Mirella Cunha, no interior da 12ª Delegacia de
Itapoã, e os comentários do apresentador Uziel Bueno, no estúdio da Band,
afrontam o artigo 5º da Constituição Federal: ‘É assegurado aos presos o respeito
à integridade física e moral’.
E
não faz mal reafirmar que a República Federativa do Brasil tem entre seus
fundamentos ‘a dignidade da pessoa humana’. Apesar do clima de barbárie num
conjunto apodrecido de programas policialescos, na Bahia e no Brasil, os
direitos constitucionais são aplicáveis, inclusive aos suspeitos de crimes
tipificados pelo Código Penal”.
E,
mais adiante: “É importante ressaltar que a responsabilidade dos abusos não é
apenas dos repórteres, mas também dos produtores do programa, da direção da
emissora e de seus anunciantes – e nesta última categoria se encontra o governo
do Estado que, desta maneira, se torna patrocinador das arbitrariedades
praticadas nestes programas”.
Em
23/5, o Ministério Público Federal abriu representação contra a jornalista. Em
nota, a Band afirmou que tomaria “todas as medidas disciplinares necessárias” e
que “a postura da repórter fere o código de ética do jornalismo da emissora”.
Em
visita ao suspeito, a Defensoria Pública assim o descreveu: “É réu primário,
vive nas ruas desde criança, apesar de ter residência em Cajazeiras 11. Tem
seis irmãos, é analfabeto e já vendeu doces e balas dentro de ônibus. Ao ser
questionado sobre como se sentiu durante a entrevista, ele diz: ‘Eu me senti
humilhado, porque ela ficou rindo de mim o tempo todo. Eu chorei porque sabia
que eu iria pagar por algo que não fiz, e que minha mãe, meus parentes e amigos
iriam me ver na TV como estuprador, e eu sou inocente’”.
A
reportagem é um exemplo de mau jornalismo do começo ao fim. E, para completar,
ainda presta um desserviço à saúde pública, ao reforçar todos os clichês e
preconceitos relacionados ao exame de próstata. Por causa dessa mistura de
ignorância e machismo, homens demais morrem de câncer de próstata no país. Os
abusos cometidos pela repórter e pelo apresentador foram tantos, porém, que
esse prejuízo passou quase despercebido.
Por
que vale a pena refletir sobre esse episódio? Primeiro, porque ele está longe
de ser uma exceção. Se fosse, estaríamos vivendo em um país muito melhor. O
microfone (e a caneta) tem sido usado no Brasil, assim como em outros países,
também para cometer violências. Nestas imagens, se observarmos bem, a repórter
manipula o microfone como uma arma. (Outras interpretações, vou reservar para
os psicanalistas.)
Muitos
passam mal ao assistir ao vídeo porque o que se assiste é uma violência sem
contato físico, sem marcas visíveis. Uma violação cometida com o microfone e
uma câmera, exibida para milhões de pessoas, contra um homem algemado (e, portanto,
indefeso), sob a responsabilidade do Estado, que, em vez de garantir os
direitos do suspeito, o expõe à violência.
O
suspeito é humilhado por algo que deveria ser uma vergonha para o Estado e para
todos nós: a péssima qualidade da educação. E, no caso dele, o analfabetismo de
um jovem de 18 anos no ano de 2012, na “sexta economia do mundo”. Ao afirmar
que o rapaz era um estuprador, a repórter colocou em risco também a vida do
suspeito, já que todos sabem – e muitos toleram – o que acontece dentro das
cadeias e prisões com quem comete um estupro.
A
repórter e o apresentador, porém, são apenas a parte mais visível da rede de
violações. Estão longe de serem os únicos responsáveis. Para que esse caso se
torne emblemático e para que a Justiça valha é preciso que todas as
responsabilidades sejam apuradas, a começar pela do Estado. Tanto em permitir
que alguém sob sua custódia fosse exibido dessa maneira, e possivelmente contra
a sua vontade, numa rede de TV, quanto nas marcas de tortura no seu rosto. As marcas
e o relato de espancamento, aliás, seriam objeto da apuração de qualquer bom
jornalista. No caso, não suscitaram nenhuma surpresa.
Basta
ligar a televisão para ter certeza de que nem essa jornalista, nem esse
apresentador, nem essa rede de TV são os únicos a violar direitos previstos em
lei, especialmente contra presos e contra favelados e moradores das periferias
do Brasil. Especialmente, portanto, contra os mais frágeis e com menos acesso à
Justiça.
Vale
a pena lembrar que o número de defensores públicos no Brasil é insuficiente –
em São Paulo, por exemplo, segundo relatório feito pela Pastoral Carcerária
Nacional e pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, há apenas 500 defensores
públicos para prestar assistência jurídica à população carente. E quase 60 mil
presos que nunca foram julgados.
Como
também sabemos, nenhum jornalista publica ou veicula o que quer. Para que
reportagens como esta tenham espaço é preciso que exista antes uma estrutura
disposta a permitir que os maus profissionais violem as leis. Em última
instância, também quem anuncia seus produtos em programas que exibem esse tipo
de reportagem está sendo conivente e estimulando a violação de direitos.
A
responsabilidade não acaba aí. Nos blogs, onde o vídeo foi denunciado como uma
violação de Direitos Humanos, parte dos comentários dos leitores pode ser assim
resumida: “Ah, mas ele não é nenhum inocente”. Ou: “Queria ver se fosse você
que ele tivesse assaltado”. São afirmações estúpidas, mas elas ajudam a
explicar por que esse tipo de abordagem tem audiência. Persiste ainda no Brasil
uma ideia de condenação sem julgamento – e o linchamento público, via TV, é uma
das formas mais apreciadas de exercer a barbárie.
Até
porque, dessa forma, ninguém precisa sujar as mãos de sangue.
É
preciso, porém, lembrar o óbvio: até ser julgado, um suspeito é um suspeito. E
só o ritual da Justiça poderá dizer se ele é culpado ou inocente. E, mesmo
culpado, ele vai cumprir a pena determinada pela lei, mas continuará a ter
direitos. E esta é uma conquista da civilização – contra a barbárie.
É
também por causa da vontade de fazer “justiça” com as próprias mãos de parte da
população que o mau jornalista se sente “autorizado” a se colocar no lugar de
juiz e condenar um suspeito no tribunal midiático. Quem o legitima não são as
leis tão duramente conquistadas no processo democrático, mas a audiência. Quem
legitima o mau jornalismo é justamente esse tipo de comentário: “Ah, mas ele
não é nenhum inocente” ou “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.
“Queria
ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.
Para
esse tipo de raciocínio valer e o mau jornalismo continuar tendo espaço é
preciso que a sociedade decida que não existem leis no Brasil e que os
suspeitos perdem todos os direitos e devem ser linchados sem julgamento, nas
ruas ou na TV. E isso vale para todos – e também para aqueles que gostam de
expressar sua sanha porque pensam estar a salvo da sanha alheia.
Por
sorte, não chegamos a esse ponto. Mas, para que violências como a que assistimos
não se repitam, não basta punir quem as comete, é preciso que cada um saiba
que, ao dar audiência para o mau jornalismo, está escolhendo a barbárie. O
telespectador também tem responsabilidade. Cada um de nós tem responsabilidade.
É assim numa democracia: a responsabilidade é compartilhada. Quem escolhe, se
posiciona e se responsabiliza. E quem se omite também escolhe e se
responsabiliza.
Este
episódio, que, repito, está longe de ser exceção, poderia ser usado para
iluminar capítulos não contados, ou pouco contados, ou ainda mal contados da
imprensa. É importante compreender que, historicamente, parte do jornalismo
policial tem uma relação promíscua com a polícia. Desde sempre. Parte porque há
grandes e decentes repórteres na história da crônica policial brasileira.
Mas,
arrisco-me a dizer, não representam a maioria.
Na
ditadura, parte dos jornalistas policiais foi conivente com a tortura dos
presos políticos, da mesma maneira que já era conivente, antes, com a tortura
dos presos comuns. E que, depois do fim da ditadura, continuou a ser conivente
com a tortura largamente praticada até hoje nas cadeias e presídios do país. Há
histórias escabrosas e ainda não bem contadas de repórteres que, inclusive,
assistiam às sessões de tortura e até ajudavam a torturar. Estas só tomei
conhecimento pela narrativa de colegas mais velhos – obviamente, nunca
presenciei.
Na
transição democrática, nos anos 80, eu cheguei a conviver com jornalistas da
editoria de polícia que andavam armados e achavam não só natural, mas
desejável, a tortura de presos. Outros se limitavam a não denunciá-las. Era
comum o repórter chegar à delegacia e ouvir a seguinte frase:
“Espera
um pouquinho, que estamos maquiando o elemento”.
“Maquiar”
o preso significava que estavam apagando as marcas de tortura, para que ele
pudesse ser fotografado ou filmado. Algumas marcas, claro, restavam. E ninguém
– nem repórter, nem fotógrafo, nem mesmo os leitores – achava estranho.
É por causa dessa mentalidade, ainda hoje
largamente disseminada entre a população brasileira, que as denúncias das
torturas praticadas nas cadeias e prisões não causam revolta – para além das
organizações de direitos humanos e alguns segmentos restritos da sociedade.
Como se, ao ser condenado ou apenas suspeito de um crime, as pessoas perdessem
todos os seus direitos, inclusive os fundamentais.
Se a
tortura de presos políticos durante a ditadura tem grande repercussão na classe
média, a tortura contumaz dos presos comuns, praticada antes, durante e depois
do regime militar, é tolerada por parte da população – até hoje. Sobre a
tortura disseminada nas cadeias e prisões brasileiras, aliás, aguarda-se a
divulgação do relatório da ONU, cujos resultados e recomendações estão nas mãos
do governo federal desde fevereiro.