ANTONIO PRATA
Do chutão
O chutão é muito brasileiro e
corintiano; é um ato de fé: a bola, como oferenda aos deuses, sobe aos céus
NA ÚLTIMA quarta, enquanto via o
Corinthians passar heroicamente pelo Santos e chegar à sua primeira final de
Libertadores, entendi a complexidade e a beleza sutil de uma jogada geralmente
pouco valorizada pela crônica esportiva: o chutão.
Embora fracasso de crítica,
poucos lances são mais aplaudidos pelo público, no estádio: a bola sobra
próxima à área, o zagueiro vem em desabalada carreira e, com um botinaço sem dó
nem rumo, a manda para a lateral, para a frente, para a linha de fundo, até, se
for o caso: importante é isolá-la.
O petardo é dado com uma
convicção talvez só comparável à do maestro, no último movimento da batuta, ao
final de uma sinfonia, à estocada mortal do toureiro, no cangote da besta
arfante, à derradeira ondulação dos corpos no momento preciso do orgasmo. E,
enquanto a bola segue sua trajetória rumo ao alambrado, à arquibancada, à rua,
à Lua e além, a torcida aplaude, vigorosamente.
O que, exatamente, aplaude a
torcida? A eficácia da jogada? Não. Se assim fosse, maiores seriam as palmas
quando o zagueiro domina a bola e a toca pro lateral, quando a lança para um
centroavante e dá início a um ataque: afinal, é mais seguro para o time que se
defende manter a bola nos pés que mandá-la para fora e a fazer voltar ao campo
nas mãos do adversário.
Acontece que o futebol, embora
bretão, não é 100% razão: o chutão, creio, é aplaudido menos por seu efeito
prático do que por sua eficácia simbólica. Não é uma solução, mas uma
declaração de princípios: aqui estou eu, pondo meu coração na ponta da
chuteira, tão empenhado em vencer que, em vez de fazer o que seria mais
inteligente, mais prudente, dominar e passar a bola, a enviarei para a Conchinchina.
A torcida aceita o paradoxo -um
cuidado tão grande que descamba pro descuido- e vibra.
Há na cultura do chutão algo de
profundamente brasileiro e essencialmente corintiano. Assisti, por esses dias,
a um ou outro jogo da Eurocopa. Poucos são os chutões e, quando há, jamais vêm
acompanhados por palmas. Séculos sob a influência de Descartes, Kant e
Maquiavel fazem com que o torcedor aplauda lançamentos longos, inversões de
jogo, a tática, enfim, as vitórias do intelecto sobre o instinto, do treinamento
sobre o falível corpo humano.
A vitória do europeu é a vitória
da lógica. Já para o brasileiro e, mais ainda, o corintiano, trata-se do
contrário. País de traficantes, cativos e degredados, time de maloqueiros e
sofredores, a vitória para nós é a coroação da improbabilidade, da reversão de
expectativa. Não vencemos "por causa", vencemos "apesar
de".
O chutão é, portanto, um ato de
fé. A bola que sobe aos céus é uma humilde oferenda aos deuses, levando consigo
todo nosso empenho, nossa devoção, levando a crença de que, apesar de nossas
falhas e fraquezas, se dermos tudo de nós, as divindades descerão de suas altas
moradas e nos auxiliarão com aquele gol de canela, no rebote do escanteio,
aquele gol de barriga, aos 47 do segundo tempo; aquele gol tão corintiano,
capaz de, por instantes, redimir nossa sofrida humanidade.
Que os deuses estejam conosco,
esta noite. Vai, Curintcha! E bola pro mato, que é jogo de campeonato!
antonioprata.folha@uol.com.br