terça-feira, 5 de setembro de 2017



05 DE SETEMBRO DE 2017

CARPINEJAR

Os sapatos lustrados do cinema

Não desejamos nos incomodar com tarefas desagradáveis. Não pretendemos ceder espaço a contrariedades. Não há interesse em lavar louça e roupa, em arrumar o lar, em faxinar o banheiro, em suar com aquilo que é provisório e será refeito no dia seguinte. Há a compulsão por sair de casa e permanecer na rua o máximo possível.

Come-se em restaurantes a semana inteira para não sujar o fogão. Casamentos são realizados de uma hora para a outra, por um clique na web. Romances são desmanchados com a mesma rapidez simplesmente alterando o status do Facebook. Não existe maturação para conhecer alguém, dispensou-se o período de namoro e noivado. Ninguém mais pretende sentir dor, luto, perda. O amor não é para sempre, analgésicos e ansiolíticos dormem no céu da boca. Os velórios acabam feitos no modo drive-thru.

As novas gerações só procuram o que provoca euforia. Não aguentam passar dificuldades - não largam a casa dos pais mesmo adultos e trabalham em empregos temporários para economizar e viajar. Não moram sozinhos cedo, não entendem o que é atravessar a penúria em nome da independência. A adolescência é um eterno egoísmo. Morreu o sentido de formar um patrimônio, de ter uma casa própria, envelhecer junto pagando as lentas prestações e legar melhores condições aos filhos e netos.

É a época das doenças silenciosas, das fobias e dos pânicos. Como somente realizamos as nossas preferências, não temos mais anticorpos sociais para enfrentar adversidades. Não aceitamos o sacrifício e a renúncia, não somos capazes de reduzir o ritmo das ambições por um familiar. O prazer deve ser constante e imediato. Como não oferecemos terreno para as tristezas e frustrações, a alegria perdeu a graça. Se tudo é alegria, nada mais é especial.

Aprendemos unicamente o que desperta o nosso agrado, desprezamos o valor do que é inútil, nossas incompetências não são mais virtuosas, não suportamos a solidão e os pensamentos, não admitimos a oposição, o contraponto e o castigo. Não pedimos desculpas (sempre encontrando uma explicação para o erro), não agradecemos nenhuma ajuda, porque enxergamos o afeto como uma obrigação.

Estamos anulando o poder da véspera, de esperar por algo importante, de se preparar para um grande acontecimento.

Lembro que na minha infância eu apenas podia ter um contentamento após concluir uma atividade chata. Eu pagava pela minha felicidade. Eu tinha que trabalhar para descansar. Nada vinha de graça.

Para conseguir dinheiro e obter o ingresso da matinê de domingo, era obrigado a engraxar todos os sapatos de casa, dos pais e dos irmãos.

Uma fileira de 10 pares me aguardava na escada do pátio. Pegava a graxa, a escova e a flanela e me esmerava em brilhar os caminhos e cadarços da família. Se não acabasse até o meio-dia, o cinema ficaria para o próximo final de semana. Nem reclamava para não desperdiçar preciosos minutos, nem cogitava a injustiça da ordem, obedecia com silêncio e obstinação.

Como a sessão dependia de meu esforço, eu aproveitava o dobro. Fantasiava com o enredo do filme que assistiria. Lustrava o couro das botinas imaginando a cadeira vermelha e a fumaça luminosa do projetor sobre a minha cabeça. Desfrutava de um tempo de expectativa, para sonhar antes de viver, para valorizar cada passo conquistado, cada satisfação adquirida.

Graças a Deus nunca fiz o que quis. Assim sei suportar o desgosto das fases difíceis e cuidar do que gosto.

carpinejar@terra.com.br