sexta-feira, 2 de novembro de 2018



01 DE NOVEMBRO DE 2018
CLÓVIS MALTA

Não abandone, jamais

Pense numa criança pequena que se perde da mão da mãe na orla de uma Tramandaí lotada em sábado ensolarado de fevereiro: isso é a sensação de abandono.

Então, sejam quais forem as circunstâncias, não deixe nunca um ser vivo para trás. Não faça alguém rejeitado se sentir como um traste. Não desampare ninguém, por piores que sejam as suas circunstâncias pessoais, emocionais, as suas condições físicas e financeiras. Não menospreze um idoso no quartinho dos fundos, nem minitartaruga, nem calopsita, não deixe o cachorro na estrada, nem o gato do lado de fora do portão.

Não abandone - assim mesmo, sem complemento, como se fosse um verbo intransitivo.

Não tente descobrir se quem padece mais com as consequências são esses seres ainda às voltas com os primeiros passos, os que ensaiam os últimos, os animais. As pessoas apenas têm sentimentos mais complexos, e as entendemos melhor. Os abandonadores - ou seria melhor abandonantes? - fazem com que o sofrimento se instale e se negue a ir embora.

Só de brasileiros, há o equivalente à metade da população do Rio Grande do Sul sem o sobrenome do pai no registro. Muitos outros o têm, mas não a atenção, o amor, o carinho, o apoio material, a presença física. As dúvidas e perguntas sem respostas entre esses seres que conheceram o sofrimento tão cedo se transformam numa cruz gigante, intransportável.

O desconhecimento sobre as razões do desprezo é algo que se agiganta dentro do peito, de tudo. A alegria da vida se esvai como o sol entre nuvens, as lágrimas vêm como chuva grossa. O desespero faz com que a vontade seja a de se jogar no chão, de se enfiar numa cratera sem fundo, até o final dos tempos.

"Sempre que vejo uma criança abandonada, eu sofro", escreveu Rubem Alves, cujos livros deveriam estar disponíveis em todas as casas, escolas, ônibus e praças: "Eu me enterneço porque a criança abandonada que mora dentro de mim está sofrendo".

Quem não tem, às vezes, o sentimento de caminhar ao léu? É mais frequente ainda quando já vivemos a condição de sem pai nem mãe. Ninguém, inclusive os abandonantes - ou seria melhor abandonadores? -, pode ser condenado pela tragédia. Todos merecem um olhar compassivo, até das vítimas.

O abandono é a negação do senso de humanidade, mas há uma luz na treva dos rejeitados. São esses seres com o dom de aplacar a pior das dores. As mulheres e homens cem por cento mães, por exemplo. E mais os cuidadores, os psicólogos e psiquiatras, os assistentes sociais, os servidores mal remunerados, os que se dedicam, de graça, à adoção de crianças e pets, essas pessoas de coração gigante, de mil braços, todos abertos para acolher. Gratidão!

Lembre desses exemplos quando se confrontar com quem foi alvo de insensatez. Rememore o apelo desesperado de uma antiga música do Paralamas do Sucesso, da qual foi adaptado o título desse texto.

Se puder, aja. Se tiver condições, assuma o compromisso de não deixar ninguém de lado, para que mais seres possam ter uma existência plena. Se possível, desabandone. Ajude a fazer com que, para muitas pessoas, viver possa ir além da luta permanente contra o sofrimento. Que a felicidade seja algo natural como respirar. Que não haja mais desamparo sobre a Terra, incluindo o solo gaúcho, de nenhum tipo, nunca mais.

CLÓVIS MALTA

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