10
de agosto de 2014 | N° 17886
CRISTINA
BONORINO
O Ebola e o nosso pequeno
planeta
Em 1666, na Inglaterra, aconteceu o último grande
surto da peste negra, ou peste bubônica, matando cerca de cem mil pessoas,
aproximadamente 15% da população urbana. Outros surtos já haviam ocorrido na
Europa durante toda a Idade Média, contudo, naquele ano, um vilarejo na
periferia de Londres resolveu lutar de um modo especial contra a doença.
Seus
habitantes isolaram-se do resto do mundo, vivendo apenas do que havia no local,
policiando suas fronteiras para que ninguém entrasse ou saísse, queimando seus
mortos até que novos casos parassem de acontecer. A história dessa pequena
cidade é contada no livro Year of Wonders, de Geraldine Brooks (2001), e há
registros de que outros vilarejos na época tenham tentado seguir o mesmo
exemplo. Hoje, no pequeno planeta em que vivemos, alguém pode testemunhar um
surto de uma doença letal em um vilarejo da África e na manhã seguinte
aterrissar em Nova York.
Surtos
do Ebola vão provavelmente continuar a acontecer por um bom tempo, e não só na
África. Estamos testemunhando em tempo real o processo de evolução de uma
relação parasita-hospedeiro. Um vírus, como o gene egoísta popularizado por
Richard Dawkins, busca usar o corpo do hospedeiro – no caso, os humanos – para
garantir sua sobrevivência e geração de novas cópias, que infectem outros
indivíduos, e assim ad eternum.
Quando
um vírus já está bem adaptado, ele não interfere muito com a sobrevivência do
hospedeiro, que funciona como máquina de contágio, garantindo a disseminação de
cópias virais por mais tempo. Já os vírus que ainda estão no início da fase de
adaptação podem causar danos maiores, inclusive morte. Mas esses vírus tendem a
não se espalhar tanto. Isso é o processo de adaptação e seleção darwiniano
clássico.
Costumo
brincar com meus alunos que o vírus mais desastrado é aquele dos filmes de
zumbi, primeiro porque os zumbis não deixam filhos, e segundo porque todo mundo
vê que o cara está infectado, e foge dele. O segundo pior vírus parece ser o
Ebola, porque ainda mata um grande número de pessoas infectadas. Contudo, vejam
bem: algumas pessoas certamente se infectam e são resistentes, não
desenvolvendo doença. Outras ficam doentes, mas não morrem. Assim, o Ebola vai
amostrando e colonizando o rebanho humano, até surgir uma forma viral que
consiga conviver harmoniosamente com (e em) seus hospedeiros.
O
hospedeiro também se adapta ao vírus. Uma adaptação importante da nossa espécie
a infecções é o sistema imunológico; outra é o desenvolvimento de tecnologia.
Quando dois americanos que trabalhavam na África apresentaram os sintomas
mortais da infecção, uma droga produzida por uma pequena empresa em San Diego,
nos EUA, chegou no dia seguinte à Libéria, na África, e parece ter salvado suas
vidas.
Essa
droga é uma combinação de moléculas da resposta imune (anticorpos) que podem
ser produzidas em laboratório e usadas como medicamentos. As drogas usadas
ainda não foram aprovadas para uso em humanos, pois essa regulamentação pode
demorar dezenas de anos. Mas a ciência por traz delas era sólida, e o seu uso
permitiu o transporte dos pacientes aos EUA para acompanhamento.
Paradoxalmente, as pessoas que estão em campo na África não possuem ferramentas
diagnósticas adequadas para identificar os infectados pelo Ebola – muitas vezes
não existe nem telefone para que as equipes atuando em vilarejos atingidos
possam comunicar-se.
Mesmo
em um super hospital como o Mount Sinai em Nova York não existem testes
diagnósticos conclusivos para o Ebola, que faz parte de um grupo chamado de
doenças negligenciadas. Tais doenças, causadas por patógenos que historicamente
estavam restritos a países pobres, não interessam particularmente à indústria,
pois quem pode pagar o tratamento? Os governos de tais países tradicionalmente
não investem em pesquisa, pois não têm recursos.
A
história do vilarejo isolado da Inglaterra mostrava um grupo de pessoas ainda
presas a conceitos ultrapassados, identificando medicamentos a bruxaria,
sofrendo para interpretar um mundo prestes a entrar em uma revolução
tecnológica. Hoje, não podemos mais trancar a vila. Negligenciar a pesquisa em
doenças de vilarejos terá, inevitavelmente, um preço global.