terça-feira, 12 de agosto de 2014


12 de agosto de 2014 | N° 17888
ARTIGOS - GILBERTO SCHWARTSMANN*

TRANSPORTE PADRÃO FIFA

Vi Dona Luzia, ofegante, pelos corredores do hospital. Ela tem mais de 70 anos e um câncer nos ossos. Nós a havíamos encaminhado para aplicações diárias de radioterapia. O tumor da coluna doía muito e havia risco de fratura.

Perguntei se estava com dor ou falta de ar. Ela disse para eu não me preocupar. Nada sério. Contou que não conseguira transporte pelo SUS.

A solução foi pagar um vizinho para trazê-la, de Canoas até o hospital, na carona de sua motocicleta. Eu disse que era um absurdo. Uma senhora daquela idade, com câncer nos ossos, sacudindo, duas vezes por dia, por toda aquela distância!

Desculpei-me em nome do hospital. Ela disse que eu não me preocupasse. Gosta muito de nosso atendimento. Mandou que eu seguisse minha rotina, pois havia muitos doentes esperando. Ela daria um jeito.

Que país maluco é este, no qual uma senhora idosa, com risco de fratura nos ossos, vem ao hospital na carona de uma motocicleta e ainda agradece pelo atendimento?

Dona Luzia pagou a Previdência por toda a vida! E aceita, passivamente, um desrespeito desses! De onde vem essa autoestima tão baixa?

Quem somos nós, brasileiros? O Macunaíma, sem caráter, de Mário de Andrade? O ser cordial, que não respeita contrato, de Sérgio Buarque de Holanda? O malandro, que leva vantagem em tudo, de Roberto DaMatta?

Dona Luzia não é nenhum deles. É mulher de respeito. Vinho de outra pipa. Foi doméstica. Aposentou-se. Lavou roupa para fora. Trabalhou a vida toda como uma mula.

Pertence a uma legião silenciosa de sobreviventes. Como o herói mestiço, dócil e sofrido de Darcy Ribeiro. Ou o herói sertanejo de Guimarães Rosa, que insiste em viver, apesar da seca.

Mesmo depois do câncer, ela cozinha, lava, enxuga, arruma a casa e, enquanto a filha sai para o trabalho, cuida dos netos. Sempre grata pelo que Deus lhe deu. No hospital, tem ainda tempo de sorrir para mim.

Moer seus ossos doentes, de Canoas até Porto Alegre, na garupa da motocicleta do vizinho, para fazer tratamento, pagando a viagem do próprio bolso, parece-lhe normal. O Brasil nada lhe deve. É como se Dona Luzia não existisse. Mais um dos sem- rosto na lista do SUS.


*Médico e professor - GILBERTO SCHWARTSMANN