14
de agosto de 2014 | N° 17890
L.
F. VERISSIMO
Fricções
O
Jorge Luis Borges chamou o espelho de método de reprodução humana anticonvencional.
O sexo e o espelho são, os dois, culpados de multiplicar pessoas, e assim
contribuir para as misérias do mundo. Borges escreveu sobre seus pesadelos com
espelhos e labirintos e tinha um notório problema edipiano com o pai, além de
um notório ascetismo com relação ao sexo. O pavor de espelhos e o desgosto com
sexo e paternidade se acoplam na aversão de Borges ao produto das duas coisas:
gente. Mais gente.
Mas
enquanto lamentava a proliferação humana de um lado e do outro do espelho,
Borges também colaborava para aumentar a demografia imaginária da Terra,
inventando pessoas. Ao contrário dos espelhos, os ficcionistas não copiam
gente, criam gente, e lançam irresponsavelmente no mundo. Como se não bastassem
os parentes e os vizinhos e os bilhões de chineses, temos que nos preocupar com
a Antígona, o Hamlet, o Raskolnicov, o Swann, centenas de personagens que, só
por serem inventados, não ocupam espaço menor em nossas vidas, e nunca vão
embora. A ficção também é um método de reprodução humana, de uma fertilidade
espantosa.
Certa
vez, tive a ideia de imitar o Ficciones do Borges e escrever um livro só de
histórias eróticas chamado Fricções. O livro começaria não com uma ficção, o
que só agravaria a densidade demográfica de gente inventada, mas com uma
reminiscência. Em 1959, eu estava em Paris (disse ele só para dizer que estava
em Paris) e tinha 22 anos. Num café, conheci uma moça húngara.
Seu
francês era quase nenhum. O meu era de Aliança Francesa, mas eu faltava muito.
Conversamos em inglês. E acabamos indo para o seu quarto num prédio sem
elevador. Quantos andares eram? Quem estava contando?! Meu único medo era que,
na confusão das línguas, tivesse havido algum mal-entendido, e meu último
franco tinha ido para pagar o café. Mas não, era sexo de graça mesmo. Só que
sexo com uma especificação. Na
cama, ela ordenou:
– Hit me! – What? – Hit me! Hit me!
Ela
queria que eu batesse nela. Em 1956, a
União Soviética tinha invadido a Hungria para abafar uma revolta contra a
dominação comunista e ocupado o país por um bom tempo. Não fiz como os
soviéticos. Bati, mas em retirada. Ainda mais que a húngara era grande.