quinta-feira, 17 de setembro de 2015



17 de setembro de 2015 | N° 18297 
L. F. VERISSIMO

Trouxas


“A verdade é para os trouxas”, diz Charlie Sheen, fazendo uma ponta no filme Quero ser John Malkovich. O filme (roteiro de Charlie Kaufman, direção de Spike Jonce) é sobre a descoberta de que existe uma maneira de entrar na cabeça do ator John Malkovich, ver o que ele vê, sentir o que ele sente e eventualmente comandar suas ações – e sobre as previsíveis consequências desse poder. O acesso à mente de John Malkovich é por uma portinhola escondida no meio andar de um prédio de escritórios, no qual todos têm que andar agachados. A portinhola dá para um corredor estreito e no fim do corredor você é John Malkovich, e bom proveito.

Interpretações, tanto para o filme maluco quanto para a frase solta do Sheen, à vontade. Ele quis dizer que a verdade é para quem não tem imaginação e vive preso à realidade? Ou que trouxas são os que não veem que não existe uma “verdade”, mas muitas, e elas se contradizem? Ou ele estava apenas bêbado?

A fala me ficou na cabeça porque parece adequada a estes tempos, neste Brasil. Nunca as “verdades” de cada um foram tão antagônicas, e nunca os antagonistas se xingaram tanto (“trouxa” é o mais brando dos epítetos trocados). Para um lado, trouxas são os que acreditaram no passado e ainda acreditam nas verdades mentirosas do PT. Para o outro lado, trouxas são os que participam de um golpe sem se darem conta da sua cumplicidade numa ruptura política e social possivelmente incontrolável. Nos dois lados, a retórica obscurece a verdade. Qualquer verdade.

Ou a frase do Sheen só quer dizer mesmo que a fantasia é preferível ao fato, e que trouxa é quem nega isto. E vive sem aceitar que tudo é irreal: a política, as paixões, a justiça e as injustiças, e até a morte.

ENGENHOSIDADE

Rio do Sul é uma simpática cidadezinha no nordeste de Santa Catarina, e Rio do Sul tem uma feira do livro, para a qual fui convidado. Todos os eventos da feira acontecem num espaço montado embaixo de uma ponte. O que só serve para mostrar como a engenhosidade supera tudo, inclusive a falta de verbas e a negligência oficial com a cultura. Estávamos embaixo de uma ponte, e estávamos, durante a feira, no lugar mais nobre da cidade.