terça-feira, 19 de fevereiro de 2019


19 DE FEVEREIRO DE 2019
CAPA

Voltar a morrer

Série "Boneca Russa", estreia recente da Netflix, renova uma temática batida da ficção fantástica por meio de roteiro e diálogos ágeis e afiados
Nadia lava o seu rosto no banheiro e entra na sala, em casa que recebe a sua festa de 36 anos. Uma amiga oferece um trago, Nadia acaba saindo da comemoração horas depois, acompanhada. Engenheira de software, ela dispensa a companhia algum tempo depois e sai de casa para comprar cigarros, enquanto se preocupa com o sumiço de seu gato Meow. Quando menos espera, é atropelada. O acidente é fatal.

Na cena seguinte, Nadia volta para o mesmo banheiro. O loop se repete com mortes bizarras, e este é o mote de Boneca Russa, seriado que estreou este mês na Netflix. Estrelada por Natasha Lyonne, a série se alimenta de um roteiro já conhecido (veja o quadro ao lado) em filmes como Feitiço do Tempo (clássico da Sessão da Tarde, de 1993, estrelado por Bill Murray) e A Morte Te Dá Parabéns (2017). A diferença é que a temática ganha ares mais reflexivos desta vez.

O fio condutor da trama - descobrir o motivo do looping fatal - ganha força com a atuação de Lyonne. Engraçada e muito expressiva, Nadia transforma a experiência mórbida em bons tons de comédia. É possível perceber o quanto ela não consegue acreditar no que está vivendo. Em alguns momentos, os trejeitos de Nadia recordam muito Nicky Nichols, a presidiária envolvida com drogas e vários relacionamentos amorosos que Lyonne viveu em Orange Is The New Black. Esta atuação lhe rendeu uma indicação ao Emmy de Atriz Convidada em Série de Comédia, em 2014.

O título do programa faz jus às bonecas tradicionais do país asiático. A cada morte que sofre, Nadia vê um pedaço da sua alma se partindo em duas peças - como os objetos de decoração russos. Ela pega essas duas partes e tenta ligar os pontos. Por ser engenheira de software, trata tudo como um verdadeiro bug no sistema chamado de vida e começa a caçar cada detalhe a fim de corrigir o fluxo da sua rotina.

Reconhecimento crítico e parceria improvável

O roteiro, assinado pela própria protagonista em parceria com Amy Poehler (de Parks and Recreation) e Leslye Headland (de Quatro Amigas e um Casamento), fica mais complexo com a aparição de Alan (Charlie Barnett), que vive o mesmo tipo de looping. Muito metódico, o homem chega a causar agonia ao espectador por seu excesso de padrões, mas sua personalidade consegue se desenvolver bem ao lado de Nadia no enredo. É o tipo de parceria improvável que acaba dando certo por forças maiores.

A história garantiu boa aceitação entre o público e a mídia. Uma forma de comprovar esta teoria é o site especializado Rotten Tomatoes, que atribui 98% de aprovação da crítica em todo o mundo, atrás somente das temporadas mais recentes de Brooklyn Nine-Nine e One Day at a Time. Até mesmo Você, que se popularizou com a história da paixão do stalker Joe, registra índices inferiores ao seriado estrelado por Lyonne.

Boneca Russa é uma das primeiras séries imperdíveis deste começo de ano na plataforma de streaming. Muito direta, com apenas 10 episódios de 30 minutos cada, a experiência do espectador se torna leve com os capítulos bem resolvidos. Em seu desfecho, a reflexão sobre a importância de viver ganha atenção especial, mas outros elementos configuram a possibilidade de uma segunda temporada. De fato, é provável que estes loopings de vida e morte estejam só começando.

Filmes déjà-vu

Feitiço do tempo

Considerado um dos mais bem-acabados exemplares do gênero "preso no mesmo dia", o filme de 1993 dirigido por Harold Ramis mostra Bill Murray como um jornalista de TV que, numa viagem à cidade de Punxsutawney para cobrir o ritual do "Dia da Marmota", se vê preso em um ciclo infinito de repetições do mesmo dia 2 de fevereiro e aproveita a recorrência para aprender a conquistar a produtora vivida por Andie McDowell.

Contra o tempo

Jake Gyllenhaal interpreta um soldado americano parte de um programa experimental que tem sua consciência "carregada" no cérebro de um homem oito minutos antes de ele morrer em um atentado a bomba no trem em que viaja. A cada nova "recarga", ele precisa tentar descobrir qual dos passageiros plantou a bomba e como o ataque realmente ocorreu. Produzido em 2011, marca a a estreia na direção de Duncan Jones, filho de David Bowie.

No limite do amanhã

Ficção científica realizada em 2014 com o astro Tom Cruise no papel de um soldado lutando contra a invasão de uma misteriosa raça alienígena. Ao morrer numa explosão em batalha, com o corpo contaminado pelo sangue alien, ele acorda outra vez no mesmo dia em que embarcou para a frente de batalha. Ao perceber que, a cada vez que morre, ele reinicia o mesmo dia, tenta utilizar esta capacidade para encontrar um meio de mudar a maré da guerra.

A morte te dá parabéns

Mais recente exemplar do gênero, lançado em 2017, o filme traz Jessica Rothe como uma universitária arrogante, egoísta e mal intencionada que é assassinada por um mascarado no fim do dia de seu aniversário e passa a reviver o mesmo dia em looping, tentando, no processo, descobrir a identidade de seu assassino. Dirigido por Christopher Landon e com roteiro do quadrinista Scott Lobdell (X-Men), tem uma sequência agendada para estrear em breve.

JULIO BOLL

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