sábado, 16 de agosto de 2014


17 de agosto de 2014 | N° 17893
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Suassuna e Lessa

Quando Ariano Suassuna faleceu, semanas atrás, logo me veio à lembrança um gaúcho com história, pensamento e obra em tudo similar à dele: Luiz Carlos Barbosa Lessa. Não faltou quem elevasse o autor do Auto da Compadecida (1955) a alturas celestiais, mas me parece que estamos devendo análise e reconhecimento ao valor de obras como a canção Negrinho do Pastoreio (1949).

Alguém poderá dizer que a conhecida toada é muito simples, e é – mas só o é porque Lessa a compôs do modo como a compôs, encontrando o jeito mais natural de enlaçar seu tempo com o passado, tendo como fio a talvez única lenda originária do Rio Grande do Sul, que recebeu a versão superior de Simões Lopes Neto.

Aqui no Estado, os colonizadores brancos tiveram menos de metade do tempo que experimentaram no nordeste brasileiro, o que significa que Suassuna trabalhou sobre um manancial muitíssimo mais amplo, que além disso mergulhava raízes na Idade Média ibérica sem problemas, enquanto para Lessa havia, além de escassos 200 anos de presença lusa aqui, o manancial local, indígena, a que ele soube prestar atenção e de que soube tirar matéria para obra de grande interesse, como A Era de Aré.

Suassuna nasceu em 1927, Lessa em 1929. Os dois em famílias proprietárias, Suassuna como parte da elite política de seu pequeno Estado, a Paraíba. Os dois migram para centros maiores, Suassuna para o Recife, Lessa para Porto Alegre. Ambos se formam em Direito, o nordestino em 1950, o gaúcho dois anos depois.

Pela mesma época de suas vidas e da história brasileira – o imediato pós-II Guerra, em que o Brasil viveu uma intensa norte-americanização nas artes, no entretenimento, nos costumes –, os dois realizaram ações culturais de grande futuro: Suassuna escrevendo teatro com base na tradição popular ibérica, já temperada pela vivência cotidiana e pelo imaginário oriundo das amplas extensões do latifúndio nordestino, Lessa também escrevendo teatro, ficção, ensaio e canção, este outro gênero de comunicação direta com gente letrada e iletrada, tendo também tipos populares no centro, camponeses desarraigados no novo mundo.

Profissionalmente, caminhos diferentes: enquanto Suassuna tornou-se professor universitário de Estética, Lessa militou no mundo da propaganda – viveu duas décadas em São Paulo, a meca econômica brasileira, exatamente no tempo da grande arrancada industrial, de meados dos anos 1950 em diante. Mas ao mesmo tempo desenvolveu uma importante carreira no mundo da arte e do entretenimento, acompanhando a Era dos Festivais e produzindo trabalhos com artistas de sua família estética, como Inezita Barroso.

Mais impressionante ainda é o fato de os dois terem protagonizado movimentos culturais articulados – Suassuna no Armorial, gestado no auge da ditadura militar, quando ocupava cargo de destaque em governos de situação, Lessa no Tradicionalismo (também ele teve cargo público de confiança, mas no final do ciclo militar).

Ideólogos e artistas, os dois usaram seu talento e seu empreendedorismo para fazer acontecer o que acreditavam dever existir: uma cultura autêntica, de matriz popular. Uma cultura (digo eu) que não devesse nada ao mundo da mercadoria, que é o mundo do pop; uma cultura infensa aos modismos, especialmente os norte-americanos; uma cultura a garantir permanência, num tempo de permanente mudança.


Era uma utopia, em parte regressiva mas de grande apelo, que ainda tem eco e nos cabe avaliar.