sábado, 13 de setembro de 2014


13 de setembro de 2014 | N° 17921
MOISÉS MENDES

Excesso de gauchismo

Tenho um trato não cumprido com o fotógrafo Mauro Vieira. Combinamos, há uns cinco anos, que sairíamos os dois, sem rumo certo, em direção à Campanha, até encontrar um casal de gays que morasse no campo. Dois peões criados na lida campeira, que tivessem se apaixonado e passado a viver juntos.

Faríamos uma reportagem sobre o amor entre homens rudes, no reduto que mais se esforça para preservar a mitologia do gaúcho como o autêntico exemplar do macho brasileiro. Alguém pode pensar que nosso projeto tinha um objetivo desqualificador. Não. Tínhamos, pretensiosamente, um objetivo civilizador.

Vou contar por quê. Sou fronteiriço, convivi com todas as faces do gauchismo, exaltadas por indumentária, costumes, uma música e uma literatura de qualidade muitas vezes questionável e uma retórica dita nativista cansativa e repetitiva. Quase tudo sob a vigilância cívica dos CTGs ou de alguém a eles ligado.

Conheço bem os excessos cometidos em nome da tradição. E sei como esse gauchismo nos faz retroceder aos tempos das guerras, do homem e seu cavalo. É um tradicionalismo sempre em busca das almas perdidas, na tentativa de juntar pedaços e significados e idealizar um modelo de gente que não existe. O gauchismo vive dos mortos.

Pois meu amigo Mauro e eu queríamos saber como um casal de homens lidava com o olhar discriminador de quem acha que “tudo o que não presta” – como disse um dia um deputado – só existe na família dos outros.

Tudo o que não presta seriam gays, lésbicas, sem-terra, negros, índios e ressentidos, invariavelmente enquadrados na mesma categoria dos que não deram certo. Mesmo que todos saibam, inclusive os sobrenomes mais nobres da Fronteira, que cada família tem pelo menos um deles e as que acham que ainda não têm, um dia, terão.

Enfim, o projeto com Mauro Vieira foi suspenso. Não produzi o mais importante texto da minha vida de repórter, e Mauro divaga até hoje quando fala da foto que imaginava fazer: os peões de mãos dadas, numa coxilha, confiantes em que seriam assimilados pelos olhares de bois, ovelhas, cavalos e dos preconceituosos que estivessem por perto.

Agora, no casamento coletivo de hoje em Livramento, apareceu – além dos casais héteros – apenas um casal de mulheres, Solange e Sabriny. Os homens gays se intimidaram com as ameaças do fundamentalismo que pôs fogo no CTG Sentinelas do Planalto. É compreensível. O fundamentalismo não está apenas no conservadorismo de Livramento.

Quinta-feira, conversei com Mauro sobre o incêndio no CTG e relembramos nosso plano de contar a história de dois homens que lavassem a louça juntos, varressem o chão de terra batida, cuidassem da decoração da casa e nos falassem de como sobrevivem num ambiente em que a macheza é a virtude a ser preservada.

Como dois campeiros rudes refletem sobre uma vida fora dos padrões do gaúcho clássico, tão mitificado por nossas inseguranças? Um dia saberemos.

Se evoluir, o debate sobre os gays da Fronteira talvez nos ofereça a chance de entender melhor os preconceitos entrincheirados nisso que se apresenta genericamente como tradicionalismo.


Talvez se admita um dia que esse gauchismo saudosista é o grande inspirador dos nossos atrasos.