sábado, 13 de setembro de 2014


14 de setembro de 2014 | N° 17922
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Em farrapos

A revista Piauí que está nas bancas traz uma sensacional reportagem com o perfil de Delfim Netto, o todo-poderoso economista, que jogou de mão em duas largas temporadas da vida brasileira, entre 1967 e 1974, a época do chamado Milagre Brasileiro, e depois na virada para a década de 80, no governo Figueiredo, em que entrou ministro da Agricultura e logo retornou ao comando da Fazenda. O autor da matéria, Rafael Cariello, emoldura o relato biográfico preciso com uma excelente história política e econômica do Brasil neste meio século que vem até nossos dias, quando o mesmíssimo pilar da ditadura militar aparece como interlocutor privilegiado de Lula.

Dá vontade de pedir que o gentil leitor que me acompanha agora pare tudo e vá lá ler o texto, para depois a gente voltar a conversar. Na impossibilidade disso, e sem querer tirar a graça das descobertas que lá aparecem – como os casos que demonstram o impressionante poder tentacular de Delfim Netto, até hoje, e que parecem saídos de alguma página ficcional sobre a Máfia –, gostaria de avançar para uma evocação que se liga diretamente ao Rio Grande do Sul.

Ela tem a ver com Luiz Fernando Cirne Lima, figura conhecida no Rio Grande do Sul por mais de um título – quando presidente da Copesul, por exemplo, marcou época como patrocinador de ações culturais de grande relevo. O perfil de Delfim repassa o episódio em que Cirne Lima, ministro da Agricultura do ditador Médici, confrontou interesse do ministro da Fazenda e, por pressão delfiniana, acabou pedindo demissão. (A reportagem anota que, procurado, Cirne Lima não quis dar sua versão para o caso.)

E qual era o teor do confronto? Segundo a matéria, Cirne Lima defendia os interesses dos pecuaristas, que procuravam preço adequado para as carnes brasileiras, em alta nas temporadas frias do ano, ao passo que Delfim e sua equipe tinham em mente os interesses macroeconômicos da gestão, que tinham em seu centro o controle de preços para conter a inflação enquanto incentivavam a acelerada industrialização.

Não me interessa o específico do problema, mas sim o genérico, que interpreto da seguinte maneira: Cirne Lima sentia-se, no cargo que ocupava, um representante de um setor, em nome do qual apresentava suas teses e tomava suas medidas, enquanto Delfim, numa posição mais perto do centro do poder e assim dedicada ao conjunto da economia e não a qualquer setor específico, tinha em mente executar aquilo que o centro do poder queria, mesmo por cima de interesses setoriais.

Em resumo um tanto grosseiro: Cirne Lima representava seu grupo de origem, com alcance limitado e geograficamente periférico dentro do país, e Delfim exercia o mando a partir da ponta dinâmica do capitalismo brasileiro, o complexo industrial e comercial de São Paulo.

O presidente militar era Médici, gaúcho de Bagé, ligado ao mundo da produção animal por laços familiares, mas essa origem era secundária no processo histórico –porque Delfim, neto de imigrante italiano pobre e ele mesmo um caso de fulminante ascensão social por trabalho e oportunidade, encarnava o executivo da lógica mundial da economia, em sua seção brasileira.

Não pude deixar de lembrar a dimensão simbólica desse confronto, agora que estamos em pleno momento gauchesco farroupilha. Um grande intelectual nascido aqui no Sul, Raymundo Faoro, por sinal descendente de italianos também, publicou, no fim dos anos 1950, sua instigante interpretação da formação do Estado nacional brasileiro, Os Donos do Poder. Nela, sugere que no Brasil a regra é que quem chega ao poder nunca se sente representante de algo, mas ao contrário passa a se considerar como sócio do poder, e faz disso o patamar para sua própria ascensão social.


Em ponto pequeno, aqui está uma diferença cultural fundante do sentido irresignado, irredentista, mas de vez em quando separatista, antibrasileiro até, que molda o gauchismo.