14
de setembro de 2014 | N° 17922
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
Em farrapos
A
revista Piauí que está nas bancas traz uma sensacional reportagem com o perfil
de Delfim Netto, o todo-poderoso economista, que jogou de mão em duas largas
temporadas da vida brasileira, entre 1967 e 1974, a época do chamado Milagre
Brasileiro, e depois na virada para a década de 80, no governo Figueiredo, em
que entrou ministro da Agricultura e logo retornou ao comando da Fazenda. O
autor da matéria, Rafael Cariello, emoldura o relato biográfico preciso com uma
excelente história política e econômica do Brasil neste meio século que vem até
nossos dias, quando o mesmíssimo pilar da ditadura militar aparece como
interlocutor privilegiado de Lula.
Dá
vontade de pedir que o gentil leitor que me acompanha agora pare tudo e vá lá
ler o texto, para depois a gente voltar a conversar. Na impossibilidade disso,
e sem querer tirar a graça das descobertas que lá aparecem – como os casos que
demonstram o impressionante poder tentacular de Delfim Netto, até hoje, e que
parecem saídos de alguma página ficcional sobre a Máfia –, gostaria de avançar
para uma evocação que se liga diretamente ao Rio Grande do Sul.
Ela
tem a ver com Luiz Fernando Cirne Lima, figura conhecida no Rio Grande do Sul por
mais de um título – quando presidente da Copesul, por exemplo, marcou época
como patrocinador de ações culturais de grande relevo. O perfil de Delfim
repassa o episódio em que Cirne Lima, ministro da Agricultura do ditador
Médici, confrontou interesse do ministro da Fazenda e, por pressão delfiniana,
acabou pedindo demissão. (A reportagem anota que, procurado, Cirne Lima não
quis dar sua versão para o caso.)
E
qual era o teor do confronto? Segundo a matéria, Cirne Lima defendia os
interesses dos pecuaristas, que procuravam preço adequado para as carnes
brasileiras, em alta nas temporadas frias do ano, ao passo que Delfim e sua
equipe tinham em mente os interesses macroeconômicos da gestão, que tinham em
seu centro o controle de preços para conter a inflação enquanto incentivavam a
acelerada industrialização.
Não
me interessa o específico do problema, mas sim o genérico, que interpreto da
seguinte maneira: Cirne Lima sentia-se, no cargo que ocupava, um representante
de um setor, em nome do qual apresentava suas teses e tomava suas medidas,
enquanto Delfim, numa posição mais perto do centro do poder e assim dedicada ao
conjunto da economia e não a qualquer setor específico, tinha em mente executar
aquilo que o centro do poder queria, mesmo por cima de interesses setoriais.
Em
resumo um tanto grosseiro: Cirne Lima representava seu grupo de origem, com
alcance limitado e geograficamente periférico dentro do país, e Delfim exercia
o mando a partir da ponta dinâmica do capitalismo brasileiro, o complexo industrial
e comercial de São Paulo.
O
presidente militar era Médici, gaúcho de Bagé, ligado ao mundo da produção
animal por laços familiares, mas essa origem era secundária no processo
histórico –porque Delfim, neto de imigrante italiano pobre e ele mesmo um caso
de fulminante ascensão social por trabalho e oportunidade, encarnava o
executivo da lógica mundial da economia, em sua seção brasileira.
Não
pude deixar de lembrar a dimensão simbólica desse confronto, agora que estamos
em pleno momento gauchesco farroupilha. Um grande intelectual nascido aqui no
Sul, Raymundo Faoro, por sinal descendente de italianos também, publicou, no
fim dos anos 1950, sua instigante interpretação da formação do Estado nacional
brasileiro, Os Donos do Poder. Nela, sugere que no Brasil a regra é que quem
chega ao poder nunca se sente representante de algo, mas ao contrário passa a
se considerar como sócio do poder, e faz disso o patamar para sua própria
ascensão social.
Em
ponto pequeno, aqui está uma diferença cultural fundante do sentido
irresignado, irredentista, mas de vez em quando separatista, antibrasileiro
até, que molda o gauchismo.