O que o celular não apanha
Nem sempre um instante de beleza é para ser fotografado ou filmado. O olho é melhor do que o celular.
A sensibilidade apresenta uma realidade paralela que é impossível de ser replicada. Você não consegue copiar o seu arrebatamento, fazer transparecer a sua paixão, partilhar o seu enlevo com os demais por meio de provas concretas e físicas. Sequer estou me referindo a óvnis ou fantasmas, ou a algum mistério do universo, dedico-me a pensar no cotidiano mais elementar.
Quem nunca se viu enfeitiçado pela lua cheia, gigante e dourada no céu, e tirou uma fotografia que virou apenas um pequeno borrão de luz? Quem nunca se emocionou diante de uma montanha iluminada por casinhas e jamais reproduziu fielmente a cascata de luzes?
Quem nunca turistou em Gramado e constatou como é a cidade à noite, um absurdo de linda, mas fracassou ao reprisar a sua exuberância em uma fotografia? Ou quem, no café da manhã, nunca recebeu um pássaro ciscando em seus pratos e xícaras, tentou apanhar uma imagem daquela visita inesperada e não pôde diferenciar a ave de um bule no resultado final?
Ou quem, no show de seu cantor preferido, nunca teimou em gravar música por música e, mesmo com zoom no palco, o material não deu a mínima ideia dos arrepios que sentiu e da eletricidade da multidão de um espetáculo ao vivo? Monumentos icônicos como Torre Eiffel, Estátua da Liberdade e Cristo Redentor não se mostram igualmente imponentes nos retratos.
Nem tudo é para ser registrado. Existem cenas que serão exclusivas para a memória, destinadas eternamente para o fulgor do seu prazer, como segredos entre você e o mundo. Não tem como dividir. Não tem como emprestar. Não tem como passar adiante. É um fenômeno único do olho nu, já que a câmera não possui a capacidade de captar todas as nuances.
Quando você fotografa ou filma, no lugar de desfrutar, guarda momentos para ver depois, o que jamais acontece. É um adiamento perpétuo, uma procrastinação de suas relíquias. O costume é postar e esquecer a experiência, tornando-se, sem perceber, tão somente um instrumento de transferência de dados.
Quantos vídeos permanecem parados na sua galeria do celular, sem uma repescagem, sem uma segunda chance? Se houvesse usado os olhos ou seus outros sentidos a cada minuto de sua trajetória, você recordaria uma infinidade de episódios marcantes.
Apenas pelo crivo dos acontecimentos, não fica coisa alguma. Se gravou e não assistiu, se gravou e não testemunhou, se gravou e não se manteve atento, tampouco fabricará saudade dentro de si, já que não exercitou o seu raciocínio, não despendeu nenhum esforço para a preservação da vivência.
Encontrava-se off-line na vida para servir suas redes online. Deveria ser o contrário. Talvez isso explique os relacionamentos líquidos em que tudo é registrado e nada é inteiramente vivido. A amnésia esvazia o enraizamento.
Sem memória, não há saudade. Você se desapega com rapidez, porque não deixou de ser virtual durante um amor real. Você coleciona um farto acervo de sua ausência, daquilo que abdicou de viver ao lado de alguém. _
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