DIÁRIO DE UM IDOSO
DIÁRIO DE UM IDOSO
O que mais me incomoda hoje é sair de casa. A prefeitura encompridou cada uma das ruas. Ir até a esquina cobra o dobro do esforço. Além disso, ela instalou ladeiras em quase todas as calçadas. Agora, atravessar a rua é um inferno, alargaram as avenidas e diminuíram o tempo das sinaleiras. Só um atleta conseguiria atravessar, eu não consigo.
Estar dentro de casa já não é a mesma coisa. Não lembro quando os arquitetos me aprontam. Além de aumentarem a altura dos degraus, sorrateiramente colocaram alguns a mais na escada. Também aumentaram a altura dos meus tapetes, para que eu tropece. As minhas cadeiras foram trocadas. Essas parecem muito com as antigas, mas não me enganam, as de agora são feitas de um material mais pesado.
O que mais me revoltou foi quando transformaram todos os impressos em bula. Livros, jornais, revistas agora são impressos com caracteres menores, minúsculos. Tampouco adianta que eu peça para alguém ler para mim. As pessoas passaram a sussurrar. É tão baixo o volume que não entendo nada.
Os espelhos não são como antigamente. Quando acho um óculos que consigo focar, descubro que eles são sádicos, só aparecem os defeitos. Tanto que não me reconheço. É outro velho, mais velho, que vive do outro lado do espelho.
Tenho certeza que um saci se instalou na minha casa. Ele coloca minhas coisas em lugares mais inusitados. Quem mais guardaria meus óculos na geladeira? Sem problema, gosto de sentir mais alguém em casa. E azar de vocês se os seres encantados preferem a nós. Quem tem pressa não percebe a magia do mundo.
Reclamam porque não uso uma bengala. Concordo, é mais seguro, mas então me digam onde achar uma de verdade, de madeira. É impossível estar elegante com estes bastões de alumínio.
Não existe mais telefone. Tenho um caixinha preta pequena, onde levo tanto tempo para adivinhar onde está a função de ligar que esqueço com quem queria falar.
O mundo virou outro planeta, mas a minha geração é feita de um metal que não se encontra mais, não nos abatemos fácil, somos resilientes. Nossa missão agora é espiar os jovens. Queremos ver se eles conseguem não repetir nossos erros, entenderem que só um item vale acumular: amigos. _
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