sábado, 19 de agosto de 2017



19 DE AGOSTO DE 2017
DAVID COIMBRA

A parte filosófica da vaca

Gera, o famoso assador, nos serviu um quitute especial outro dia. Estávamos eu, o Potter e o Arthur Gubert em volta da churrasqueira quando ele tirou de lá uma peça de carne que chamou de "aranhita". Como o Gera é uruguaio, imaginei que fosse com til sobre o ene: "arañita".

- Sabe por que arañita? - ele perguntou, com um pedaço de malícia pendurado no ponto de interrogação.

Aquilo me deixou desconfiado, e minha desconfiança tinha razão de ser. Sim, o que o Gera nos servira era a... Como direi para não ferir a pudicícia dos leitores? Era... a genitália da vaca.

Aquilo me fez especular. Porque, em geral, não penso na vaca ou no boi quando trincho um churrasco. A picanha, o entrecot e até a costela são, para mim, produtos individuais, com características e existência próprias. Nunca imagino que aquela picanha fez parte de um bicho de 700 quilos, que teve pai, mãe e, talvez, filhotes.

Mas agora, não. Agora, ao olhar para aquele órgão tão íntimo, tão pessoal da vaca, não pude deixar de imaginá-la inteira sobre suas quatro patas e diante do seu rabo, possivelmente de tez malhada e de nome, sei lá, Mimosa.

Cheguei a ver Mimosa pastando feliz pelos campos do Rio Grande. Às vezes suspirava como suspiram as vacas, às vezes dava um curto trote com suas companheiras bovinas. Pode, inclusive, ter fornecido prazer a um touro fogoso que andava por lá. Como se chamaria o touro? Pensei em Alfeu. Alfeu é bom nome de touro.

Pois Alfeu e Mimosa se refocilaram no fundo de alguma estância gaúcha, e essa cena imaginária de sexo animal, inevitavelmente, me arrastou à filosofia. Porque eu e Alfeu tiramos prazer do mesmo pedaço de Mimosa. Ambos nos servimos dela. Não seria essa uma alegoria feminista? Os machos usando a fêmea sem consideração, cevando-se nela até o fim, até consumi-la toda, todinha.

Lembrei-me de um conto do Moacyr Scliar. Foi seu melhor conto, o que, aliás, disse a ele. Scliar, então, falou que aquele conto era citado em todo lugar que ia.

Não por acaso. Nesse conto, o personagem principal é uma vaca chamada Carola. Eu o li quando era guri, vou reproduzir o que ainda levo depositado na memória: Carola e um homem se salvaram de um naufrágio e foram dar em uma ilha deserta. Permaneceram lá por meses e, neste tempo, o homem primeiro amou Carola quando sentiu desejo e, depois, sentindo fome, foi comendo Carola pedaço por pedaço, sem que ela tugisse ou mugisse em reclamação.

Mais tarde, li diversas interpretações sobre esse texto. A mais recorrente foi de que Scliar fez uma crítica ao capitalismo: Carola era o povo explorado e o homem era o capitalista explorador.

Perguntei para o Scliar se era realmente aquilo que ele queria dizer com A Vaca e ele respondeu que cada um tirava da história o que queria. Achei enigmático e decidi usar essa resposta quando alguém me perguntasse algo parecido.

Assim, neste momento, digo a você, caro leitor, que a história de Mimosa e Alfeu pode se tornar, sim, um minúsculo conto feminista. Ou não. Tanto faz. O importante é que me repimpei com o churrasco das partes pudendas de Mimosa, a ponto de propor um brinde aos meus amigos:

- A todas as fêmeas da Terra!

Eles ergueram suas taças, mas me encararam como se eu tivesse bebido vinho demais. Falta de sensibilidade. Enquanto isso, outro naco de Mimosa crepitava na churrasqueira, já no ponto para ser consumido pelos machos de outra espécie.

david.coimbra@zerohora.com.br