sábado, 19 de agosto de 2017



19 DE AGOSTO DE 2017
LYA LUFT

Em casa na selva


Quem teve filhos, ou cuidou de bebês, deve ter observado que desde os primeiros momentos somos diferentes. Diversidade não tem só a ver com raça, cor, religião, ideologia, mas também se realiza entre os ditos "iguais", nas diferenças da mente, capacidades, conceitos e emoções que vão nos marcar.

Desde o começo, temos a criança solar, naturalmente animada e alegre, de sorriso fácil e olhar luminoso, e a outra, mais quieta, recolhida, assustadiça, desconfiada. Mal-humorada, até facilmente agressiva: sim, criança pode ter um gênio bem difícil, porque nasceu assim ou porque o convívio familiar, educação, experiências pessoais a vão distinguindo. Mas amadurecendo temos raciocínio claro, e força de vontade: pessoas agressivas podem se educar, e melhorar. Outras, mesmo de natureza mais afável, em ambiente hostil, violento, frio, podem se tornar hostis ou parecer antipáticas.

Por que escrevo isso? Porque me espanta - a gente sempre acha que a certa altura da vida nada nos espanta, mas é mentirinha - essa nossa agressividade à flor da pele. Não recordo tempos tão intolerantes. Branco e preto. Politicamente correto (detestável) ou incorreto. Azul ou vermelho. Direita ou esquerda, e outras noções já bem ultrapassadas.

Andamos pouco civilizados, por qualquer coisa atropelamos, batemos, xingamos, afastamos, deletamos alguém: por que tanto assim, por que com tamanha frequência, por que essa dificuldade em entender, aceitar (nada a ver com se acovardar), desculpar, e - se queremos afastar de nós - em nos distanciarmos sem ferir?

Possivelmente porque, neste mundo conturbado, neste ambiente político bizarro, nesse espetáculo de violências variadas mundo afora ou aqui na esquina, estamos realmente com os nervos expostos: medo, insegurança, o assombro moral, nos deixam em alerta.

Arreganhamos os dentes, esticamos a cauda, e lá vamos nós, agredindo muitas vezes por receio infundado, sem motivo concreto. Em alguns lugares, ir a um jogo de futebol pode ser arriscar até a vida. Ninguém com bom senso conversa no carro diante da porta da namorada. Ninguém circula tranquilo nas ruas escuras, e descemos do carro, ou tocamos a campainha, olhando para os lados como se estivéssemos na selva.

Estamos na selva: nós a criamos. Ou permitimos que se formasse, e até participamos dela. Isso tem remédio, receita, tem jeito? De momento, ando cética quanto a comissões, grupos, discursos. Eu, aqui, comigo, devo tentar ver todos como pessoas: com rosto, emoção, vida, mesmo que eu não lhes saiba o nome.

Vou ao jogo para torcer, para ver meu time ganhando, mas perder não deve ser o fim da minha decência. Discutir opiniões é normal, mas não preciso dar porrada física ou verbal se minhas ideias não forem aceitas. O trânsito está um horror, mas não tenho de atropelar alguém ou sair gritando insultos. Se o trabalho foi duro, o dinheiro é pouco, se alguém me irritou, não posso chegar em casa me portando da mesma forma.

Somos todos inocentes. Ou somos uns pobres diabos assustados. Se a gente não começar em si mesmo, feito formiguinha, a coisa só vai piorar: logo até dentro de casa vamos acordar rosnando como numa selva ameaçadora.

lya.luft@zerohora.com.br