sábado, 14 de fevereiro de 2015


14 de fevereiro de 2015 | N° 18073
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Janta

É NATURAL QUE, de uma região para outra, haja preferências distintas

Em algum desvão esquecido do meu computador, reencontro uma pergunta que me fez, há tempos, a talentosa Haydée Porto, caríssima amiga, figura imprescindível do teatro gaúcho: “Uma conhecida me criticou bastante por causa de uma palavra que usei: janta. Na verdade, nunca tinha me dado conta disso. Nós, gaúchos, estamos errados ao falar assim?

Ela é portuguesa, dona de uma escola famosa em SP, e se orgulha de não cometer erros de Português – mas diz ‘meia cansada’! Quando chamei sua atenção para isso, quase morreu de susto! Mas e nós, hein, Moreno, como ficamos com a nossa janta?”.

Ficamos muito bem, minha cara Haydée. Janta é um substantivo formado por derivação regressiva do verbo jantar, criado à semelhança de dezenas de outros que extraímos de verbos: por exemplo, trocar deu troca, alcançar deu alcance, baixar deu baixa e almoçar deu almoço. Por que, então, jantar não poderia dar janta? Aqui na fronteira já ouvi muita gente dizer suba (“Vou comprar o carro antes da suba do dólar”), como substantivo para subir.

 Eu acho estranho esta suba (que Houaiss registra como coisa nossa, aqui do pago), assim como tua amiga deve ter achado estranho a nossa janta – e assim como nós, os brasileiros, não estamos habituados ao termo apanha, muito usado em Portugal (“No Alentejo, a apanha da azeitona começa em outubro”). E daí? É natural que, de uma região para outra, haja preferências distintas em tudo – na maneira de fazer churrasco, na música que toca no rádio e, mais do que em todas as demais áreas reunidas, nos vocábulos que empregamos.

Uma passada no Google deu mais de 13 milhões de ocorrências para janta; mesmo que isso não possa ser considerado argumento “científico”, é, no entanto, uma evidência amazônica da vitalidade desta variante. Todos os bons dicionários a registram, embora a assinalem com o rótulo de “popular” ou “familiar” – uma forma prudente de alertar o usuário para o fato de que ela pode ser considerada inadequada em registros mais formais, o que está de acordo, a meu ver, com a nossa realidade. Eu, por exemplo, reservo jantar para uma refeição especial, geralmente comemorativa e com mais formalidade: jantar de formatura, jantar dançante, jantar de encerramento.

Janta, para mim, designa a nossa refeição usual da noite (às vezes carinhosamente chamada de jantinha), seja na família, seja entre amigos – como, aliás, aparece em todos os autores modernos: “Finda a janta, o primeiro arroto real ecoa” (Monteiro Lobato); “A mulher mandará a empregada pôr a janta, e perguntará se ele quer tomar banho” (Rubem Braga); “resto de janta abaianada” (João Cabral de Melo Neto); “A janta posta” (Vinicius de Morais); “Devia ser hora de se comer a janta” (Guimarães Rosa). Diz para tua amiga que, ao usarmos janta, estamos em excelente companhia... E diz para ela, também, que os deuses da gramática há muito estabeleceram uma lei inexorável: quem se mete a corrigir os outros logo, logo acaba sendo corrigido.

Cláudio Moreno, escritor e professor,


escreve quinzenalmente aos sábados