sábado, 27 de agosto de 2022


1 BILHÃO DEADEPTOS ATÉ 2035

A regra é levar pouca coisa junto. Roupas, produtos de higiene e utensílios de cozinha, já que gostam de deixar a casa alugada por aplicativo com a sua cara. Não podem esquecer dos notebooks, fundamentais para trabalharem de qualquer lugar. Colocam tudo dentro do carro e partem para o próximo destino, onde devem ficar um ou dois meses, não mais do que isso, até escolherem outra cidade para morar.

A vida sem residência fixa tornou-se possível quando Stephanie Pedron e Eduardo Zanotto, de Porto Alegre, ambos com 34 anos, passaram a trabalhar em casa durante a pandemia. Vivendo em São Paulo, para onde se mudaram em 2019, quando ele aceitou uma proposta de um banco digital, já estavam cansados de ficar isolados em um apartamento. Decidiram cair na estrada sem precisar entrar em férias ou largar o emprego. Tornaram-se nômades digitais.

A ideia surgiu no inverno de 2021, durante um período de descanso em Capitólio (MG), onde se revigoraram em cachoeiras e trilhas após um ano trancafiados pelo medo do coronavírus. Ao retornarem à capital paulista, não fazia mais sentido manter os gastos na cidade grande se os chefes sequer exigiam que comparecessem ao trabalho. Todas as tarefas já eram cumpridas a distância, na frente do computador.

- Voltamos para São Paulo e decidimos: vamos entregar o apartamento e morar em Airbnb. Então vendemos toda a nossa mobília. Não sobrou nada - conta Eduardo, que trabalha como gerente de tecnologia.

Escolheram viajar pelo Brasil. Alugaram um carro e foram a Santos, no litoral paulista, e depois a Paraty (RJ). Em uma breve visita para matar a saudade da família no Rio Grande do Sul, fizeram uma parada em Garopaba (SC), onde prolongaram a estadia para três meses, mais do que o planejado. Ali, foi difícil dar adeus às amizades que acabaram criando.

Só cruzaram as fronteiras do país quando tiveram de cumprir um compromisso profissional de Eduardo no México, o que exigiu organização com o fuso horário. Mesmo no Exterior, Stephanie seguiu trabalhando para um aplicativo de pagamentos brasileiro, onde atua como gerente de produto. Precisou se alinhar com o horário comercial da empresa e só quando encerrava o expediente podia sair do hotel e conhecer a cultura dos mexicanos, batendo perna pelos bairros e visitando museus.

A preferência deles, no entanto, são os lugares menos badalados. Quando concederam entrevista a ZH, haviam retornado a Minas Gerais, dessa vez para ficar em Mariana, município conhecido pela arquitetura barroca. Alojaram-se em uma casa de dois andares em meio a construções de estilo colonial, com direito a um pátio onde mantêm uma horta.

Toda vez que são bombardeados com perguntas sobre a vantagem de não terem um lugar para chamar de seu, respondem com argumentos que podem dar inveja em quem só consegue viajar durante as férias.

- Claro que em vários momentos é um desafio ficar sempre se planejando para estar em outro lugar. Mas a gente tenta manter uma rotina, cuidar do corpo. Eu, por exemplo, sempre quis aprender a surfar. Em Garopaba, comecei a fazer aulas de surfe. Também pensava: será que não vou sentir falta da minha cozinha, com as minhas coisas? A experiência de viver em casas diferentes nos ajuda a pensar como será a nossa casa, no futuro. Brinco que virei sommelier de Airbnb. Se a gente viesse de férias para Mariana, nunca iríamos viver essa cidade como estamos vivendo - diz Stephanie.

Ser nômade digital é diferente de ser um turista, que deixa os compromissos de lado enquanto viaja, ou mesmo de alguém que se desloca para uma cidade a trabalho. Como observa a turismóloga Ivane Fávero, mestre em Turismo, o nômade digital agrega tudo: as obrigações e a vontade de conhecer um novo destino.

- O conceito tradicional de turismo é o de lazer não remunerado. O nomadismo digital quebra isso. A pessoa consegue trabalhar, estudar e fazer turismo em qualquer parte - define.

Embora já fosse tendência antes de 2020, a pandemia foi o empurrão que faltava para popularizar esse estilo de vida. De acordo com o relatório Tendências de Imigração 2022, emitido pela Fragomen, especializada em imigração, cerca de 35 milhões de pessoas aderiram ao trabalho remoto durante a crise sanitária. A estimativa da empresa é de que, até 2035, existam em torno de 1 bilhão de nômades digitais pelo mundo.

Além disso, segundo a Fragomen, 29 países já têm programas para facilitar o ingresso dos nômades digitais, entre eles o Brasil. Não há pesquisas sobre o número exato de nômades digitais no país, mas desde janeiro o Ministério das Relações Exteriores emite um visto específico para estrangeiros que comprovem vínculo de trabalho em outro país. Até 10 de agosto, haviam sido concedidas 124 autorizações. Outras 84 foram solicitadas até julho por pessoas que já estavam por aqui, sendo que 37 foram deferidas.

De acordo com o governo federal, a elaboração desse visto especial segue uma tendência de "migrações por estilo de vida" e foi formulado levando em conta experiências de países como Portugal, Austrália, República Tcheca, Tailândia, México, Costa Rica, além de polos mundiais de nômades digitais, como Bali, a Ilha da Madeira e as cidades de Lisboa e Berlim.

Em março deste ano, o Brasil também regulamentou o trabalho remoto, inclusive para estagiários e aprendizes, permitindo que o empregado exerça suas funções em outro país.

- A partir da pandemia, aprendemos que dá para trabalhar em casa, enquanto as empresas entenderam que isso é até vantajoso, porque há economia de despesas e a produtividade dos funcionários não cai. Em alguns casos, até melhora. Com o desejo acumulado de viajar, as pessoas estão tirando o atraso - afirma Ivane.

Mas ser um nômade digital não é para todos. Professora da disciplina de Sistemas de Informação do MBA da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Neiva Coelho Marostica lembra que algumas profissões jamais vão permitir essa prática:

- Há profissões que não podem aderir ao nomadismo digital, como um atendente de varejo, por exemplo, já que ter alguém ali, presencialmente, é uma parte importante para o relacionamento com o cliente. Por outro lado, profissões que envolvem um ambiente digital, como produtor de conteúdo, desenvolvedor de sistema, designer, essas conseguem.

Foram os ventos que levaram Sara Bagatini ao Ceará. Aos 33 anos, ela vive na praia de Cumbuco, a 30 quilômetros de Fortaleza. Divide a rotina entre a função de gerente de produto em uma rede de lojas de eletrodomésticos no Rio Grande do Sul e a prática do kitesurfe, que depende de uma boa lufada de ar para deslizar pela água.

Também foi na pandemia que Sara mudou de vida. Entregou o apartamento em Porto Alegre porque já não precisava mais aparecer na empresa, sediada em Cachoeirinha, na Região Metropolitana. Com amigas que também trabalham a distância, passou a dividir o aluguel de uma casa em Ibiraquera, no litoral catarinense, onde aprendeu kitesurfe. Juntas, decidiram ir para o Nordeste, onde as condições de vento são ideais para o esporte.

Tudo muito diferente do que Sara havia vivido até 2019. Acostumada a bater ponto diariamente na empresa, enfrentava uma hora de trânsito para ir, outra para voltar. Não fazia esportes. Com a vida de nômade, deixou o carro na garagem da casa dos pais, em Guaíba. A carga horária de trabalho é a mesma, mas pode cumpri-la usando chinelos nos pés. No intervalo, pega o equipamento de kitesurfe e cai no mar.

- Valorizo o meu bem-estar. A Sara de hoje prioriza mais a saúde. Física e mental - frisa.

 KARINE DALLA VALLE

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