quarta-feira, 24 de agosto de 2022



23 DE AGOSTO DE 2022
NÍLSON SOUZA

A neve e o Neves

Nunca estive tão próximo da história do Brasil como no dia em que nevou em Porto Alegre. Naquela sexta-feira gelada de 1984, eu estava longe de minha cidade natal. Não vi a neve ao vivo, mas vi de perto um capítulo inesquecível da restauração da democracia em nosso país. Acompanhei, como repórter, a visita do então candidato à Presidência da República Tancredo Neves ao túmulo do presidente Getúlio Vargas, em São Borja.

Enquanto os habitantes da Capital se deslumbravam com os flocos inesperados que tingiam de branco telhados, carros e calçadas, eu enfrentava o frio cortante da cidade fronteiriça para testemunhar os movimentos e as palavras daquele homenzinho frágil que, para milhões de brasileiros, simbolizava a esperança de um futuro melhor para o país.

Reconto parte do que vi. No cemitério de São Borja, de braços dados com o então governador fluminense Leonel Brizola, Tancredo visitou as sepulturas de João Goulart e Getúlio Vargas, fazendo um pronunciamento diante do mausoléu do presidente que comandou a nação por quase duas décadas. Foi um momento bem confuso. A multidão que acompanhava o candidato, formada por políticos, jornalistas, fotógrafos e curiosos, chegou mesmo a pisotear outros túmulos para ver de perto a homenagem.

Ainda guardo em minhas anotações a parte do discurso em que o mineiro cita Getúlio como inspiração para o Brasil tornar-se uma grande potência. "Não a potência da força, dos canhões, das metralhadoras, mas a potência do espírito, da inteligência, do sentimento, da bondade, da compreensão e do amor" - profetizou o velho político.

Depois do discurso, ele foi levado a um CTG para o churrasco preparado por lideranças do PMDB e do PDT, partidos que se uniram por sua candidatura. Lá, Brizola teve o cuidado de picar a carne em pedaços minúsculos, para que o visitante, já em idade avançada, pudesse saboreá-la sem maiores dificuldades. Como estava bem próximo, pude ver que ele apenas chupava os pedacinhos e os depositava de volta na beira do prato - o que, mais tarde, relacionei com os problemas gastrointestinais que impediriam sua posse.

Tancredo passou como a neve daquele 24 de agosto que completa 38 anos amanhã. Sua morte transformou a esperança em frustração, mas sua habilidade de conciliador e seu exemplo de luta contribuíram decisivamente para devolver aos brasileiros o direito irrenunciável de escolher o presidente do país, sem tutores nem intermediários.

NÍLSON SOUZA

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