terça-feira, 23 de maio de 2017


20 de maio de 2017 | N° 18850 
MARIO CORSO - Psicanalista

MU


Qual é a palavra que mais faz falta à língua portuguesa? Cada um tem sua lista, a que encabeça a minha é mu. Aposto que você já precisou dela e não a tinha na mão, teve que dar mil voltas, usando várias palavras, quando teria resolvido a querela usando apenas uma. Sabe quando o interlocutor te pergunta dando duas opções: afinal, é ou não é? Você é contra ou a favor?


Falássemos japonês ou coreano, poderíamos responder “mu”, ou, se fosse chinês, que provavelmente deu origem ao termo, a resposta “wu” acabava a discussão. Essas duas letras são de uma sabedoria que nossa tradição ocidental não possui, muito menos de forma tão concisa. A palavra significa: desfaça a pergunta, ela não tem resposta possível dentro deste contexto. É uma forma radical de dizer nenhum dos dois, mas é mais do que isso, pois elegantemente desconsidera a lógica da pergunta.

Para a maioria das perguntas, uma resposta binária serve, mas, para muitas das questões decisivas da existência, não. Sem mu, você tenta argumentar sobre a complexidade, e seu interlocutor, rispidamente, refaz a pergunta tentando arrancar um sim ou não. Quer forçar uma escolha dentro da lógica que lhe faz sentido. O que fazer com esse povo que, usando a classificação de Nelson Rodrigues, chamaríamos de “idiotas da objetividade”?

Se você não está convencido de que um terceiro termo é possível e necessário, responda usando sim ou não à seguinte questão: você já parou de espancar seu filho? A resposta binária admite que você espanca e que tem um filho! Esta é uma questão autoevidente da simplicidade falaciosa, mas nem sempre temos uma transparência tão visível. Às vezes, quem faz a pergunta nem é malicioso, está apenas usando uma lógica rasa, ignora quanto planta na boca alheia teses e ou fatos da sua própria compreensão reducionista.

Eu gosto do termo para meu uso próprio, para não cair em armadilhas, pois nosso cérebro adora construir ficções dualistas que nos parecem razoáveis e não o são. Escorregar para o binarismo e ir chafurdar na lama da idiotia da objetividade é um passo rápido. A vacina é desconfiar sempre da lógica das perguntas, sobretudo das nossas.

As épocas de crise açoitam esse terceiro termo. Por urgência, por afobamento, as respostas mu são exiladas, não ouvidas. O drama é que justamente as soluções tendem a ser da ordem do pensamento mu. Carecemos de desmanchar as falsas oposições que nos separam e impedem uma outra forma de ver a realidade. A sabedoria nem sempre é responder a uma questão, mas, sim, saber quando o melhor seria reformulá-la.

PS: Aprendi isso no inclassificável livro Zen e a Arte de Consertar Motocicletas. Premonição ou não, tinha acabado de retomar o livro, quando soube da recente morte do autor, Robert M. Pirsig.