quarta-feira, 25 de março de 2020


25 DE MARÇO DE 2020
NÍLSON SOUZA

O flautista da bicicleta


O lado suportável deste tormento global a que todos estamos submetidos é que isolamento deixou de ser sinônimo de solidão. Em tempos de internet e redes sociais, as pessoas podem passar dias, semanas, até meses, fechadas em casa sem deixar de se comunicar com parentes e amigos. Além disso, embora nem todos façam bom uso dessa facilidade, a tecnologia permite ocupar o tempo com atividades produtivas e prazerosas, capazes de evitar tanto a neurose quanto a alienação. Quem gosta de brincar com as letrinhas, por exemplo, sempre acha um fato para transformar em crônica e compartilhar com aqueles que preferem uma leitura amena para aliviar o peso das notícias.

Meu episódio literário da semana foi a passagem do afiador de facas diante da minha janela. De início, fiquei ouvindo, ao longe, a melodia inconfundível de sua flauta. Na medida em que o som se tornava mais claro, misturou-se com o ruído de sua bicicleta chocalhando nas pedras da rua. Até que surgiram na esquina o personagem e seu instrumento de trabalho. Era um tipo atarracado, de boné enterrado na cabeça e bigodes espessos, sob os quais levava de quando em quando a mão direita com a sua flautinha de Pã, enquanto a esquerda empurrava o veículo adaptado.

Pausa para a mitologia: Pã era o deus dos bosques, dos rebanhos e dos pastores, mas também o responsável por provocar temores infundados nas pessoas que se aventuravam a entrar no mato à noite - daí a origem da palavra pânico.

Pois a flauta do amolador só me causou nostalgia, de um tempo em que os afiadores de facas e tesouras provocavam correria nas donas de casa dos bairros pobres. Com a industrialização acelerada e a produção massiva de qualquer tipo de instrumento, essas ferramentas de corte passaram a ser substituídas com mais facilidade. Hoje ninguém mais diz uma frase que tantas vezes ouvi na infância e que, talvez, até já nem seja politicamente correta:

- Esta faca está cega, precisa ser levada ao afiador.

Tudo passa, ainda que algumas coisas passem mais lentamente. Pelo menos na minha rua, ninguém rompeu o isolamento para solicitar os serviços do flautista. Ele e sua bicicleta com rebolo foram se escoando lentamente da paisagem até desaparecerem por completo na esquina. Mas a melodia daquela flauta do passado ainda ficou por longo tempo ecoando na minha alma reclusa como um suave lenitivo para estes dias de angústia.

NÍLSON SOUZA

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