sexta-feira, 22 de julho de 2022


22 DE JULHO DE 2022
CARPINEJAR

As estátuas amareladas da nossa amnésia

As estátuas de Mario Quintana e Carlos Drummond de Andrade amanheceram amareladas na Praça da Alfândega, em Porto Alegre. Não era o efeito do sol no bronze das criações dos artistas plásticos Xico Stockinger e Eloisa Tregnago.

Estavam alvorecidas pela depredação nada lírica. Diante da estupidez do ato, logo eu raciocinei que esses vândalos se viram confiantes e seguros para manchar os nossos símbolos culturais por algum motivo.

Eles personificam as consequências de um descaso geral com a nossa literatura, com a nossa memória, com os nossos ídolos. O desprezo ao nosso patrimônio vem de um lugar, de um exemplo, de uma mentalidade.

Aqueles vândalos não agiram sozinhos. A tinta partiu antes da nossa amnésia geral. De um comportamento político que não valoriza as pegadas de seus artistas e bardos, desmerecendo a vida e a obra dos que cantaram a Capital em versos e prosa.

Talvez a indiferença comece na falta de cuidado e de iniciativa do próprio poder público.

Por exemplo, a casa onde morou Caio Fernando Abreu no Menino Deus acabou sendo demolida nesta semana - ela, que foi seu último destino e personagem de suas crônicas: "o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto".

Por que a casa de Caio não foi tombada como patrimônio histórico? Todos sabiam que aquela residência em estilo espanhol, na Rua Doutor Oscar Bittencourt, nº 12, tinha sido dele. Três vezes premiado com Jabuti, quando o autor faleceu em Porto Alegre, em 1996, já era reconhecido como um dos maiores escritores brasileiros.

O endereço deveria ter sido preservado há 26 anos. É uma longa e criminosa omissão. Poderíamos ter oferecido ao público, para visitação, a Casa de Cultura Caio Fernando Abreu, como temos a Casa de Cultura Mario Quintana e o Centro Cultural Erico Verissimo.

A licença para demolição partiu da prefeitura de Porto Alegre. Não dá para considerar desconhecimento de causa, mas vista grossa e indolente má vontade.

Outro exemplo é o poeta laureado Luiz de Miranda, de 77 anos, dono da poética mais extensa do mundo, com cerca de 4 mil páginas. Está internado no Hospital da PUCRS em estado grave, depois de ser encontrado vagando desorientado no centro da cidade. Vivia na mais completa penúria financeira.

Repetimos em parte a história de Quintana quando foi desligado do jornal Correio do Povo, amparado por círculo de amigos e familiares, sem nenhuma ajuda e incentivo das autoridades.

Será que esses vândalos não estão emulando nosso desinteresse pela nossa história, pelo nosso legado, pelos nossos escritores? Eles atacam um mundo do qual não se sentem parte.

Quintana, hoje vestindo o amarelo do escárnio em plena praça pública, já profetizava que arcaria com uma dor infinita das ruas de Porto Alegre. Pena que não é de uma saudade feliz, como ele queria.

CARPINEJAR

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