terça-feira, 26 de julho de 2022


26 DE JULHO DE 2022
CARPINEJAR

Soprando velas apagadas

O assassinato bárbaro de Daniella Perez, no finalzinho de 1992, marcou meus 20 anos. Daniella era um pouco mais velha do que eu. Bailarina e atriz, admirada e cultuada pelo público como "namoradinha do Brasil", foi morta a tesouradas pelo ator Guilherme de Pádua, seu colega de elenco na novela De Corpo e Alma, da Globo, com a ajuda de sua então esposa Paula Thomaz.

Até a renúncia do presidente Fernando Collor terminou obscurecida pela comoção nacional diante do brutal homicídio, com 18 punhaladas. A mãe e novelista Gloria Perez decidiu abrir o seu baú de lágrimas e repor a verdade em documentário da HBO, Pacto Brutal.

Ela está somente agora velando a sua filha dignamente, depois de três décadas. Teve que combater as versões mentirosas dos assassinos, que tentaram culpabilizar a vítima a partir de teorias sem pé nem cabeça de assédio, desequilíbrio e inveja, com o objetivo de criar atenuantes para se livrar da pena máxima - o casal psicopata alegava que apenas tinha matado a jovem atriz para se defender (paradoxalmente, de uma moça de compleição frágil e doce).

Sabemos que Guilherme se mostrou descontente com o apequenamento de seu papel no roteiro da própria Gloria. Ele aparecia como par romântico de Daniella na novela, e o romance no folhetim havia terminado naquela semana.

Gloria admite, com toda a angústia materna: - As facadas eram para mim.

Não venho aqui dar spoiler, mas reconhecer a grandeza do caráter resiliente de Gloria. Nenhuma mãe sofreu como ela, inclusive por transpor a culpa adicional de perder a sua filha por rumos de sua escrita. Não cogitava que a sua ficção influenciaria e apressaria o fim da sua realidade mais íntima e preciosa.

É inumano conter a emoção quando ela diz que poderia ter almoçado com Daniella, só não o fez para adiantar os capítulos antes da festa do Réveillon, e assim sacrificou a chance de uma despedida.

Ou quando, ao identificar pelo tênis que era realmente a sua filha morta, sentiu uma dor tão grande que a anestesiou para sempre. Ou quando, ao ver a sua criança de 22 anos estendida no matagal, queria colocá-la de volta no ventre.

Ou quando conclui que não há como desconfiar da morte. Era um dia tão comum, normal, igual a tantos outros, jamais passou algum vento ou calafrio pelo seu coração anunciando que poderia terminar de um modo tão trágico. Ela acordou, tomou café, trabalhou e não pressentiu qualquer fatalidade no horizonte marítimo ensolarado do Rio de Janeiro.

E, após a notícia, a percepção de injustiça e impotência que tem todo enlutado ao descobrir que pessoas continuam as suas vidas como se nada tivesse acontecido. Enterrar um filho muda drasticamente o DNA da sensibilidade. Representa a maior privação do amor, a maior provação da sanidade, a profanação do ciclo natural da existência.

É aniversariar uma ausência, é todo ano soprar velas apagadas, é todo ano imaginar como estaria o filho, o que ele estaria realizando, como estaria a sua feição e a sua aparência, numa existência paralela na fantasia da memória.

O sonho de Gloria era recuar no tempo, chegou a pedir para Deus, para alienígenas, para o sobrenatural mais insondável. Jamais conseguiu o milagre de trazer a sua filha de novo ao convívio, mas, corajosamente, vem dividindo a saudade. Uma saudade sem pele, em que tudo machuca.

CARPINEJAR

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