terça-feira, 31 de janeiro de 2023


30/01/2023 - 16h41min
Fabrício Carpinejar

A porta da cozinha 

Tempo feliz em que não sofríamos com a preocupação e a infelicidade dos adultos. A porta da frente era somente para visitas. As visitas tinham o direito exclusivo de apertar a campainha e de pisar no capacho verde em que se lia “bem-vindo”. Ai de nós se sujássemos o tapete com os nossos tênis enlameados!

Entrávamos em casa pelo pátio, abrindo o portão de ferro da garagem. Nem precisávamos de chave. Jamais carreguei chave de casa na minha infância. A porta dos fundos estava sempre destrancada.

Vivíamos uma sequência planejada de cenas: o cachorro pulava nas nossas pernas, brincávamos com ele no chão para amenizar a sua carência e acalmar os seus latidos, largávamos a mochila no armário da limpeza como se fosse um peso morto e seguíamos para dentro do lar, a partir da cozinha.

Chegávamos da aula por volta do meio-dia. Um pouco antes até, já que morávamos perto da Escola Estadual Imperatriz Leopoldina e andávamos a pé por algumas quadras. Jamais mudávamos o nosso roteiro: atravessávamos parte da rua Palmeira, depois Guaporé, em seguida Bagé para desembocar na Lageado.

Gritávamos “ô de casa” para ver se pai ou mãe se encontravam por perto. Nosso primeiro impulso consistia em abrir as tampas das panelas fumegantes para espiar o que iríamos comer. Ninguém fazia spoiler da refeição no dia anterior. Descobríamos o cardápio desse jeito, com o vapor na cara. Uma nebulização sem igual do perfume da comidinha caseira. Fechávamos os olhos para inspirar longamente o aroma.

Na maior parte das vezes, desfrutávamos de um momento sozinhos com o fogão. Com a comida pronta e prestes a ser servida. Ninguém estava por ali vigiando e fiscalizando a nossa invasão. Pegávamos sorrateiramente um garfo na gaveta para experimentar um pouquinho de cada iguaria. Soprávamos para não queimar o céu da boca. Um bafejava o talher do outro pela pura algazarra.

Sabíamos que não podíamos profanar o cardápio, mas não temíamos a reprimenda. Valia a pena. Negávamos o mandamento sagrado e a regra geral de apenas comer na mesa e com as mãos limpas. Tempo feliz em que enganávamos a fome ciscando o que achávamos pela frente, como passarinhos penetras que pegavam rapidamente o alimento e logo voavam. Tempo feliz em que ninguém tinha morrido e todos se ajudavam. Tempo feliz em que não sofríamos com a preocupação e a infelicidade dos adultos.

Melhor do que provar o conteúdo das panelas, só quando a mãe fazia panquecas e nos antecipava as massinhas quentes e douradas. Ríamos da chance única e autorizada de comer antes da família. Pouco importava a falta de recheio, deliciávamo-nos com o favoritismo. Nas vésperas de nossas festas de aniversário, contávamos com o luxo de raspar o brigadeiro. Recebíamos uma colher de pau para o banquete dos restos do doce, um cetro da nossa primazia e realeza. Lavávamos o fundo do aço com os beiços.

Vocês ainda se lembram disso, meus irmãos?

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