sábado, 6 de junho de 2015



07 de junho de 2015 | N° 18186  
L. F. VERISSIMO

Cultura x História

A ocupação da cidade síria de Palmyra por militantes do Estado Islâmico trouxe o medo de que os invasores, como já fizeram em outros lugares, destruam monumentos e obras de arte de civilizações antigas. O que, no caso de Palmyra, patrimônio cultural da humanidade, seria um crime especialmente doloroso. Os soldados islâmicos teriam se comprometido a não tocar em uma pedra tombada pela Unesco, mas a ameaça permanece.

Nada a ver, mas me lembrei de ter lido que na revolta popular de 1830 contra o reinado de Charles X, na França, intelectuais e artistas ocuparam o museu do Louvre para proteger seus tesouros do povo revoltado.

Enquanto nas ruas de Paris a massa sublevada conseguia, em três dias de agitação, derrubar o rei Charles X e acabar com a restauração dos Bourbons – e, como efeito colateral, inaugurar uma monarquia constitucional com a ascensão de Louis Philippe d’Orleans – os artistas montavam guarda dentro do museu, para manter a Cultura a salvo da História, que acontecia lá fora.

Mas contam que – intelectuais e artistas sendo como são – não demorou para que surgissem brigas entre os ocupantes do Louvre, não por questões políticas, mas por diferenças estéticas e estilísticas. As brigas chegavam à troca de socos, de sorte que os tesouros do Louvre estavam mais ameaçados pela violência dos seus protetores do que pela violência das ruas.

O pintor Delacroix foi um dos entusiastas do levante de 1830 que, entre as barricadas e o Louvre, preferiu a guarda do museu. Mas é dele a grande obra inspirada pelo evento, a pintura A Liberdade Liderando o Povo, com a figura de Marianne, símbolo da Revolução Francesa, com os seios nus, à frente dos revoltosos. Ao contrário do que se pensa, a participação popular na revolta de 1830 foi maior do que em 1789, data oficial da Revolução, e Delacroix deixa isso claro com o destaque que dá a figuras do proletariado no seu quadro. Em que não se vê nenhum burguês seguindo Marianne.

Além das outras novidades da grande pintura alegórica de Delacroix que chocaram os críticos da época, como a caracterização realista de trabalhadores e a glorificação da revolta, há um detalhe anatômico importante: Marianne tem cabelo embaixo do braço erguido que segura a bandeira tricolor. O símbolo da Liberdade de Delacroix tem cabelo no sovaco. O que não deixa de também ser revolucionário.

Cultura é o que fica, nas pedras antigas de Palmyra ou na coleção de arte do Louvre. História é o que passa e avança, muitas vezes com violência. Cultura cria, História destrói, e não tem o menor interesse em arte. Elas podem se complementar, mas nunca será uma convivência tranquila.