terça-feira, 26 de abril de 2022


26 DE ABRIL DE 2022
TICIANO OSÓRIO

O homem que fazia o bem para poder fazer o mal

Michael Myers? Hannibal Lecter? Coringa? Que nada. Os vilões que me assustam são os da vida real, retratados em abundância pela Netflix em documentários como os recentes Conversando com um Serial Killer: O Palhaço Assassino, que reconstitui a história de John Wayne Gacy (1942-1994), e Segredos e Crimes de Jimmy Savile, sobre o DJ e apresentador de TV que morreu em 29 de outubro de 2011, dois dias antes de completar 85 anos. Sim, ele nasceu no Dia das Bruxas.

Esses personagens exercem um estranho fascínio. Como se fossem as bruxas e os monstros dos contos de fada, nos avisam de que o mal existe. Por sorte ou pelo exímio trabalho da polícia, às vezes há punição. Mas em outras o caçador não chega a tempo de salvar a Chapeuzinho Vermelho.

A referência à menina que se embrenha na floresta não é gratuita. Os chocantes crimes cometidos contra crianças, adolescentes e mulheres parecem ser os que mais atraem documentaristas e espectadores.

Gacy, entre 1972 e 1978, matou pelo menos 33 rapazes com idades de 14 a 21 anos (antes de morrerem, eles foram submetidos a sevícias indescritíveis). Após passar 14 anos no corredor da morte, foi executado. Jimmy jamais foi preso - aliás, seus crimes sexuais contra centenas de crianças, adolescentes e mulheres jovens só foram devidamente investigados após ele falecer.

Ambos eram Lobos Maus em pele de cordeiro. Mantinham a persona monstruosa sob uma fachada de homem bem-sucedido nos negócios e com espírito comunitário.

Como dono de uma empresa de reformas e construções. Gacy até atraiu algumas vítimas. Era membro do Partido Democrata, organizava festas de verão, integrou comitês de seu bairro e dirigiu uma parada ligada à imigração polonesa em Chicago - por conta desse cargo, chegou a ser fotografado com a primeira-dama dos EUA, Rosalynn Carter, em 6 de maio de 1978. Também juntou-se a um clube de palhaços que se apresentava em eventos beneficentes e hospitais infantis. Graças à atuação como Pogo e Patches, tinha facilidade para ludibriar garotos fazendo o chamado "truque da algema".

Entre os programas de sucesso apresentados por Jimmy na BBC, estavam o musical Top of the Pops (1964-2006) e o infantil Jim?ll Fix It (1975-1994), no qual realizava desejos enviados por crianças via correio. Tornou-se amigo da família real - era uma espécie de conselheiro do príncipe Charles - e, em 1990, virou Sir, a mais alta honraria da Coroa. Destacou-se pelo trabalho de caridade, como a arrecadação de fundos para o hospital Stoke Mandeville. Em todos os ambientes, cometia abuso sexual.

Gacy, pelo menos inicialmente, e Jimmy, praticamente a vida toda, foram protegidos sob o escudo de "cidadão de bem" - os dois documentários servem de alerta sobre como o sucesso e a popularidade podem nos iludir, desviar nosso olhar. Quando a polícia começou a investigar Gacy, o advogado Sam Amirante foi à delegacia:

- Garoto desaparecido? Estão loucos. John Gacy é um sujeito legal. Pegaram o cara errado.

No caso de Jimmy, a dimensão pública, a relação com a realeza e a notória filantropia tornaram gigantesca a blindagem. Ou seria a cegueira da imprensa? Ou a omissão de empregadores e colegas? Ou até a corrupção policial? Rumores sobre o nocivo comportamento sexual sempre existiram, mas eram rapidamente varridos. O pior é que, como imagens de arquivo revelam, volta e meia o astro dava pistas fortes. Ainda que em tom de piada, descrevia agressões a garotas. Em entrevista à apresentadora de TV Gloria Hunniford, ele literalmente abriu o jogo quando ela elogiou seu voluntariado.

- Não - retrucou Jimmy. - Isso é tudo fachada. Isso é tudo mentira.

Em diversas aparições na TV, ele brincava: "Meu julgamento está marcado para a próxima quinta-feira". Era sua formação católica falando alto: acreditava piamente no Juízo Final. Ao contrário de John Gacy, que nunca demonstrou um pingo de remorso por seus crimes (consta que suas últimas palavras foram "Beije meu rabo"), Jimmy Savile parecia ter um peso na consciência. No seu entendimento, as ações de caridade contrabalançariam os atos de perversidade. Era um homem que fazia o bem para, com certa paz de espírito, fazer o mal.

O colunista David Coimbra está em licença médica - INTERINO

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