sexta-feira, 29 de abril de 2022


29 DE ABRIL DE 2022
EDUARDO BUENO

Trabalho e ócio

Minha relação com o dinheiro é feito a de um cocainômano. Quando o tenho, tenho a certeza de que não haverá de se finar - e cheiro-o todo de uma sentada só. Tão logo reduzo o vil metal a pó - e sempre o faço -, entro de imediato em síndrome de abstinência, viro gigolô de palavras e saio a vender por preço igualmente vil meu único bem: o verbo, que por vezes ponho a serviço de causas menos nobres do que a literatura ou, vá lá, o jornalismo, entregando não só verbos e advérbios como até, oh céus, adjetivos para quem não os merece.

Minha relação com o trabalho é feito a de um daqueles cristãos das Filipinas durante a Semana Santa. Adoro o trabalho, eu o venero e reverencio. Mas quanto o tenho - e sempre o tenho -, trato de transformá-lo logo numa cruz e me curvo para carregá-lo pesadamente. Enquanto não o reduzo a pó, qual um condenado a trabalhos forçados numa mina de sal, ou naquelas pedreiras dos antigos romanos, sigo na labuta e nem preciso de carrascos, pois trato de me autoflagelar, após esgotadas não só minhas forças, mas todas minhas conjunções subordinadas adverbiais - e as conjunções adversativas e as concessivas também.

Minha relação com o ócio é feito a de um daqueles dândis da Inglaterra na virada do século 19 para o 20. Quando ocioso, rápido me torno também um mandrião, um malandrim, um indolente, um folgazão, recostado na flacidez cintilante das almofadas de cetim, à sombra das raparigas em flor, entre baforadas no narguilé, a bebericar anis, pestanejando ante um antigo conto árabe e dissipando a fortuna que nunca tive, a antever a hora em que terei de recolocar minhas parcas e rotas letras à venda no ciclo sem fim.

E já vou avisando que dispenso o dito "ócio criativo", pois que criatividade nunca me faltou - talvez o problema seja justo o oposto. O que me recorda, aliás, de um artista porto-alegrense que encontrei ao pé de um muro roído pelo sol e quando perguntei-lhe como ia, ele apontou com um indicador para a fronte e disse: "Muita ideia" e com o outro indicador a roçar no polegar, completou: "E pouca grana...".

Devaneio em torno desses temas provocado pela leitura de O Elogio do Ócio, coletânea de ensaios de um de meus autores favoritos, Robert Louis Stevenson. "Supõe-se que a existência de pessoas que se recusam a entrar no páreo por dinheiro é ao mesmo tempo uma ofensa e um desestímulo às que entram", escreve ele. E então, num relance, vislumbro meu destino: ir parar numa ilha longínqua, ser reconhecido pelos nativos como exímio Tusitala ("o contador de histórias") e, quando minha hora chegar, ser por eles conduzido ao túmulo no cume do monte mais alto, entre as palmeiras balouçantes, após dias sem fim e sem dinheiro, nos quais trabalho e ócio nunca deixam de ser a mesma coisa.

EDUARDO BUENO

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