sábado, 14 de outubro de 2023


14 DE OUTUBRO DE 2023
CARPINEJAR

O esconderijo do pijama

Custei a usar pijama. Minha bronca tem uma explicação familiar. Veste uma rejeição antiga.

Só aceitei colocar o conjuntinho dado pela minha esposa recentemente, aos 50 anos, porque ela frisou: "não se parece em nada com um pijama". Eu me senti liberado do trauma pela camiseta e bermuda monocromáticas e descoladas, que preservavam o ar jovial e não me prendiam a uma aparência de conformismo. O preconceito nasceu pelo simples fato de que achava que o pijama havia sequestrado o meu pai.

Ele tinha tirado o pai de mim na maior parte da infância e da adolescência. A ausência paterna se devia ao seu uniforme de dormir, à sua indumentária do descanso. Se o traje noturno não fosse posto pelo meu pai, teria aproveitado mais o seu colo, a sua proteção, os seus conselhos. Meu pai existia em casa até a hora de se cobrir com o pijama.

Quando botava as duas peças listradas, desaparecia. Evaporava da comunicação possível do sofá da sala, da disponibilidade do abraço. Tornava-se um prisioneiro de uma solidão inacessível. Entrava na solitária. Chaveava a cela do cárcere imaginário.

Não tinha mais pai das 21h até as 6h. Não sei quem ele era no seu expediente de cavaleiro medieval da madrugada, de armadura e elmo de algodão. A mãe repreendia toda aproximação. Nenhum assunto urgente, ou dúvida espinhosa, ou dever da escola, ou briga na rua o trariam à tona.

- Não incomode seu pai, ele está de pijama. - Seu pai não pode atender, ele está de pijama. -Tem certeza de que não consegue carona com algum amigo, meu filho? É que seu pai está de pijama.

O pijama era um escritório de reuniões secretas. Seu isolamento. Seu bunker militar. Seu esconderijo matrimonial. Como se ele morasse moralmente num elo perdido da rotina, fisicamente num anexo da casa. Era o mesmo que já estar dormindo, o mesmo que se transferir para uma realidade paralela do multiverso, o mesmo que estar viajando, o mesmo que estar em coma.

Ele continuava pai com qualquer outra roupa, menos de pijama, esse destino alheio ao nosso mundo palpável.

Meus irmãos e eu escutávamos seus chinelos pelo piso de madeira, os espirros alérgicos, a tosse do nervosismo, o ronco de britadeira, o barulho da descarga, o chiado das hélices do ventilador de teto. Ouvíamos sua voz comentando com nossa mãe sobre um colega de trabalho, as gargalhadas estrepitantes de alguma conversa, mas não o enxergávamos. Não podíamos vê-lo.

Até hoje, ao telefonar tarde da noite para o meu pai, em vez de perguntar se ele está acordado, questiono se está de pijama.

CARPINEJAR

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