25
de maio de 2015 | N° 18173
L.
F. VERISSIMO
A coruja
atrasada
Hereges,
sodomitas e usurários eram as vítimas preferidas da Inquisição pelo que
pensavam e faziam (e judeus só por serem judeus) e muitos acabaram na fogueira,
para aprender. Hoje, hereges escrevem best-sellers sobre a inexistência de
Deus, a opção sexual de cada um só diz respeito a cada um e a usura legalizada,
agora chamada de capital financeiro, domina o mundo.
O
que prova que a História é uma velha senhora irônica que só precisa de tempo
para virar tudo ao avesso – e tempo é o que não lhe falta. Ateus se arriscam a
serem xingados por crentes, mas não mais a serem queimados vivos, a união de
homossexuais ainda é resistida mas tem até a bênção implícita do Papa, e a
usura se recuperou tão completamente do tempo em que era pecado, que hoje
provoca e se redime das suas próprias crises, sem culpa e sem sinal de contrição.
A
História poderia defender sua inconstância, ou seu senso de humor, invocando a
coruja de Minerva, aquela que Hegel usou como metáfora para a incapacidade dos
filósofos de compreenderem seu próprio tempo. Segundo Hegel, a coruja de
Minerva, deusa romana da sabedoria, só voava ao anoitecer, quando não há mais
luz para enxergar nada, muito menos a verdade do momento.
Vivemos
para a frente, mas entendemos para trás, e a filosofia sempre chega atrasada.
Foi, acho eu, na sua crítica a essa resignação de Hegel que Marx disse que os
filósofos não deveriam se contentar em apenas entender o mundo, mas tentar
mudá-lo. Não sei se Marx chegou a encampar a parábola de Hegel, mas ele diria
que a coruja precisa voar mais cedo para ver com mais clareza. Outra forma de
dizer que filosofia e política precisavam se aproximar na busca da luz.
Como
a coruja atrasada do Hegel, que só filosofava sobre uma época quando a época já
estava no ocaso, a História pode ser perdoada pelas suas incongruências. A
Santa Inquisição se assentava sobre um bloco de certezas que pareciam eternas,
com um poder que duraria séculos. Hereges, sodomitas, usurários e judeus não
eram apenas aberrações aos olhos do Senhor, sua existência ameaçava a ordem
natural de todas as coisas. Que culpa tem a História de a eternidade durar tão
pouco, e a ordem natural de todas as coisas ser sazonal?