RUTH
DE AQUINO
O corredômetro da doença
Pagamos
impostos altíssimos para ver humanos estendidos no chão dos corredores de hospitais
Poderia
ser só no Ceará. Poderia ser só por causa da “chuva e aumento de viroses”,
segundo a visão embaçada do governo cearense. Poderia ser só no Nordeste e no
Norte, regiões mais carentes. Mas não é. A fileira de doentes no chão do
corredor do hospital Instituto Dr. José Frota em Fortaleza, alguns com soro e
remédios na veia, é uma síntese do descalabro da Saúde no Brasil.
Mesmo
na cidade mais rica, São Paulo, doentes são tratados como cidadãos de última
categoria. Uns inconvenientes, por expor um fracasso nacional. O Ministério da
Saúde deveria mudar o nome para Ministério da Doença.
O
direito ao atendimento médico digno está “garantido” na Constituição. Pagamos
impostos altíssimos no país da propina. Até ontem, apenas em 2015, o governo
Dilma havia arrecadado de nós, contribuintes, um recorde de R$ 700 bilhões. Trabalhamos
quase metade do ano para pagar impostos. E para quê? Para ver o espetáculo
degradante de seres humanos estendidos no chão de corredores de hospitais. Isso
quando não estão na fila, ao relento, rezando para uma criança não morrer no
colo ou um idoso não morrer na cadeira de rodas.
“A
gente se sente impotente. Se for algo que mata, você morre mesmo”, disse ao
jornal Folha de S.Paulo a estudante de 18 anos Louisy Lombardi, que esperou
seis meses por uma consulta ginecológica em 2014. Joabe Silva, de 36 anos,
aposentado por invalidez, ficou das 15 às 24 horas na rua com o filho de 1 ano,
com conjuntivite e bronquite, até ser atendido. Peregrinou por três AMAs (unidades
ambulatoriais) e dois hospitais. Seu sentimento? “Completo abandono.”
Pode
ser febre alta. Um princípio de infarto. Pode ser a necessidade de uma ressonância.
Uma biópsia. Uma ultrassonografia. Um raio X para uma perna possivelmente
fraturada. Agendamento de uma cirurgia, simples ou complexa. Quando o tempo
significa a vida ou a morte. A Saúde municipal, estadual e federal virou caso
de polícia. A gente sente a gravidade do drama quando alguém próximo de nós,
sem condições de pagar por medicina privada, precisa ser atendido ou operado.
Prefeituras
e governos estaduais criaram postos de saúde 12 horas para casos menos sérios. Esses
postos têm vários nomes e siglas, dependendo da cidade e do Estado. O objetivo é
desafogar os prontos-socorros dos hospitais. A notícia é: não adiantou,
entenderam, prefeitos e governadores? “Nunca tem médico”, é uma queixa comum da
população. “Nunca tem data de agendamento.” “Nunca tem material.” É a Terra do
Nunca.
Faltam
médicos. Muitos desistem de ir para os postos porque não há condições básicas
para exercer a função. Até nos hospitais, como o Hospital Geral de Fortaleza,
faltam luvas, seringas, produtos para higienizar as mãos, fios para suturar
cortes, tubos para entubar os bebês. “Estamos trabalhando numa guerra. Profissionais
levam medicamentos de casa”, disse a presidente do sindicato dos médicos na
capital cearense, Mayra Pinheiro. Hospitais dão calote em fornecedores. O
calote vem lá de cima – e sabemos por quê. Não há mais dinheiro. Nem para
financiar casa própria, nem para financiar estudantes, nem para cuidar de
doentes.
No
Estado do Rio de Janeiro, o Hospital Rocha Faria, em Campo Grande, interditou a
sala de parto porque o ar-condicionado não funciona por falta de manutenção. Montanhas
de lixo ocupam corredores e salas. Faltam lâmpadas. Um recém-nascido teve infecção
hospitalar logo após o parto. “Meu neto nasceu na sala de pré-parto, o lugar
estava muito sujo, até vômito tinha”, disse ao jornal O Globo a avó do bebê,
Naila de Sá Alves, de 41 anos, que participou pessoalmente de um mutirão, com médicos
e enfermeiros, para limpar o local. Isso pode?! Macas estavam nos corredores da
emergência do Rocha Faria.
Em
outro hospital estadual, o Carlos Chagas, em Marechal Hermes, faltam antibióticos,
luvas, fraldas e até papel de escritório. Roupas e lençóis não são trocados
como deveriam ser. Uma enfermeira disse ter comprado com seu dinheiro lenços
umedecidos. Parentes levam cobertores para os doentes. Não entendo por que a
presidente Dilma Rousseff e o governador Pezão não fazem uma excursão aos
hospitais. Deveriam comer no bandejão dos médicos e enfermeiros. E posar no
corredômetro da vergonha.
Há seis
anos, em 2009, um artigo meu em ÉPOCA se intitulava “Queria escrever sobre a
luz de maio”. De lá para cá, tudo piorou. Do índice de homicídios ao de
roubalheira, passando pelo número de desempregados – que não conseguem sequer
entrar com pedido de seguro-desemprego!
A
luz de maio continua linda. Mas o resto é escuridão: os bandidos estão à solta
na planície e no planalto.