sábado, 23 de maio de 2015


24 de maio de 2015 | N° 18172
ANTONIO PRATA

Um machado, comida pra gato

Por vinte anos, trabalhei em casa: me trancava no escritório e, escondido de mim mesmo – ou das tentações que poderiam me afastar de mim mesmo, como a televisão, o telefone, a geladeira –, escrevia o que tinha que escrever. Com dois filhos, porém, o meio de campo embolou um pouco e acabei alugando uma sala comercial, na rua de baixo, em cima de um petshop. Poderia falar maravilhas da minha sala comercial: a paz, o silêncio, a concentração monástica que alcanço sem filhos, vizinhos ou internet. Hoje, porém, quero falar do petshop, no térreo.

Não tenho cachorro, gato ou periquito. Os bichos que entram lá em casa são todos do tipo que se trata com Baygon ou – glória ao Senhor! – raquetinha elétrica. Daí resulta que, todo dia – e pela primeira vez na vida – passo por uma loja onde não há nada, absolutamente nada que eu queira comprar.

Note que eu digo “queira comprar” e não “vá comprar”, pois meu consumismo é de natureza meramente contemplativa. Acho que sou um voyeur. Olho encartes publicitários nos jornais e faço compras mentais. Três quilos de bacalhau da Noruega. Um fogão de seis bocas. Um Land Rover, em 160 vezes, sem juros. São pequenos devaneios, no meio da tarde, sem nenhum compromisso com a realidade. É como se apaixonar pela voz de uma cantora, no rádio, parado num sinal. Depois a música acaba, o trânsito anda, a paixão se esfuma.

Digamos que eu vá numa dessas enormes lojas de construção pra comprar, sei lá, mãos francesas. Num corredor, me deparo com um machado. Meus olhos brilham. Um machado de verdade! Cabo de madeira, lâmina vermelha com fio metálico, como nos desenhos animados da minha infância. Custa duzentos reais. Eu tenho duzentos reais. Eu não tenho um machado. O que eu faria com um machado? Sei lá. Vai que cai uma árvore, na minha rua? Vai que pega fogo na casa da vizinha e ela, apavorada, não consegue abrir a porta? Me vejo correndo pela rua, todo Bruce Willys. Me vejo sendo carregado pelo povo, sob aplausos, e dando entrevistas pra televisão.

Ando mais um pouco, chego na seção de cordas. Há cordas de cânhamo, como as de um navio pirata, cordas coloridas, como as de um alpinista. Quero levar trinta metros dessa. Quarenta daquela. Cinquenta da outra. Tento justificar meu desejo: deve haver alguma coisa na minha casa que precise ser amarrada. Não, não há. Vou deixar no carro, então. Tenho certeza de que algum dia me depararei com uma situação em que as cordas serão fundamentais. Não, não tenho certeza nenhuma. Desisto das cordas.

Faz uns anos, quebrei o pé. Na loja de produtos ortopédicos, enquanto esperava o vendedor me trazer as muletas, me flagrei, atento, decidindo entre diferentes próteses de quadril. “A vermelha parece mais sólida. Mas a azul, bom, a azul talvez seja mais leve...”.


Já comprei, mentalmente, jatos executivos, cubas pra pia, blocos de mármore, canos de cobre, pés de cabra e moinhos eólicos. No petshop aqui embaixo, contudo, nada me interessa. Todo dia, vejo com o canto dos olhos as embalagens coloridas e sinto um vazio no peito. Whiskas sabor legumes, focinheiras, jaulinhas de plástico, para levar bichos no avião. Não tenho cachorro, gato ou periquito. Talvez, um dia, compre um machado.