quinta-feira, 28 de outubro de 2021



28 DE OUTUBRO DE 2021
NÍLSON SOUZA

Os mortos que voltaram


Há exatos 50 anos, numa Feira do Livro como esta que reabre amanhã no Centro de Porto Alegre, Erico Verissimo lançava o seu último romance. Incidente em Antares, apresentado ao público porto-alegrense no dia 29 de outubro de 1971, continua sendo uma leitura atual, atraente e divertida - não apenas pela contundência e pela precisão da crítica política nele contida, mas também - e principalmente - por usar o realismo fantástico para escancarar as mentiras de uma sociedade hipócrita e injusta.

Em primeiro lugar, destaca-se a sacada genial do maior escritor gaúcho, surgida - segundo relato da professora Maria da Glória Bordini - quando ele leu num jornal norte-americano a notícia sobre uma greve de coveiros. A partir daquela pequena nota, Erico construiu uma história envolvente tendo como palco uma cidade fictícia do Rio Grande do Sul, na qual mortos insepultos devido à paralisação dos trabalhadores do cemitério levantam de seus esquifes e voltam temporariamente à vida para acertar contas com autoridades, parentes e maus cidadãos. Um acerto de contas moral, bem entendido, pois não se trata de uma dessas sangrentas batalhas de zumbis das séries televisivas.

A arma do escritor - e de seus ressentidos personagens - é unicamente a palavra. Com discursos no coreto central da cidade, os mortos denunciam a corrupção, a violência, as traições, o autoritarismo e outras mazelas de uma sociedade desigual. O mais curioso é que o romance foi lançado em pleno regime militar, driblando a censura real num dos momentos de maior repressão no país.

Os mortos-vivos dão um verdadeiro show de moral nos muito-vivos. Livres de convenções e represálias graças ao verdadeiro habeas corpus preventivo que a morte lhes confere, os sete defuntos escancaram a podridão dos poderes, desmascaram a hipocrisia da sociedade conservadora e fazem todo o tipo de acusações contra os autodenominados "cidadãos de bem" - extrato social que não raro abrange um contingente expressivo de canalhas.

Incidente em Antares, que também virou minissérie de televisão, continua sendo uma leitura imprescindível, especialmente nestes tristes tempos em que os mortos - sem volta e sem um coreto para se manifestar - continuam sendo desrespeitados pelos que se julgam mais vivos, mas que são apenas retardatários na fila inexorável.

NÍLSON SOUZA
erto de contas moral, bem entendido, pois não se trata de uma dessas sangrentas batalhas de zumbis das séries televisivas.

A arma do escritor - e de seus ressentidos personagens - é unicamente a palavra. Com discursos no coreto central da cidade, os mortos denunciam a corrupção, a violência, as traições, o autoritarismo e outras mazelas de uma sociedade desigual. O mais curioso é que o romance foi lançado em pleno regime militar, driblando a censura real num dos momentos de maior repressão no país.

Os mortos-vivos dão um verdadeiro show de moral nos muito-vivos. Livres de convenções e represálias graças ao verdadeiro habeas corpus preventivo que a morte lhes confere, os sete defuntos escancaram a podridão dos poderes, desmascaram a hipocrisia da sociedade conservadora e fazem todo o tipo de acusações contra os autodenominados "cidadãos de bem" - extrato social que não raro abrange um contingente expressivo de canalhas.

Incidente em Antares, que também virou minissérie de televisão, continua sendo uma leitura imprescindível, especialmente nestes tristes tempos em que os mortos - sem volta e sem um coreto para se manifestar - continuam sendo desrespeitados pelos que se julgam mais vivos, mas que são apenas retardatários na fila inexorável.

NÍLSON SOUZA

Nenhum comentário:

Postar um comentário