O filho do fim
Todos os filhos são filhos do início, mas somente um será o filho do fim. O filho que cuidará do pai ou da mãe na velhice. O filho que virá de longe para se oferecer por inteiro.
O filho que largará tudo para estar perto na hora do adeus. O filho que não pensará duas vezes para fazer as malas e se mostrar disponível. O filho que ficará na cabeceira da cama ouvindo com atenção as palavras derradeiras. Não desperdiçará nenhum som, nenhum suspiro, nenhum esboço de riso.
O filho que não se acovardará com a morte iminente porque se ocupará em registrar detalhe por detalhe do apogeu daquela vida. Toda lâmpada brilha mais antes de apagar, toda existência ilumina mais antes de ir embora.
Será o filho gentil, pronto para os extremos da condição humana. O guardião das confissões, que não passará adiante os segredos ditos nos sonhos e nos delírios, que saberá discernir o que é intenção e o que é medo.
Será o filho que controlará o nível das dores, o nível do cansaço, os limites de cada turno. Será o filho que entrelaçará o prendedor dos dedos como quem mede a pressão.
Será o filho que realizará o último desejo, com a determinação férrea daquele que cumpre a reabilitação de um vício. Será o filho macio, que promoverá a amizade com todos os tempos vividos, com todas as versões da pessoa.
Será o filho com a amnésia das brigas e discussões, já que o esquecimento é doce no aceno, já que o esquecimento não olha para trás. Será o filho que não se desviará da missão de ser útil, e afastará qualquer um que se aproximar com alarmismo.
Será o filho que não levará nenhuma ofensa, grito, desabafo, indiscrição para o lado pessoal. Não tem como esperar bons modos no desespero.
Será o filho que penteará os cabelos do pai ou da mãe, desfazendo os nós suavemente, que se preocupará com a aparência para as visitas, que limpará a remela dos olhos, que trocará o enxoval, que dará água de paninho na boca para umedecer os lábios, que não terá nojo ou repulsa da debilidade, que adormecerá dobrado no sofá aguardando o amanhecer.
Será o filho plantonista da madrugada, cobrindo os horários que ninguém pode, garantindo a paz paliativa do desfecho. Será o filho que não ansiará por ser amado de volta, muito menos se verá carente de reconhecimento. Não pedirá nada em troca, não exigirá retorno de coisa alguma, atendendo ao chamado da própria consciência.
Trata-se de um único filho entre todos, que se fará presente na despedida. De contato miúdo e estreito, com a rotina incansável das mãos livres.
E nunca costuma ser o filho predileto, jamais é o filho mimado e supervalorizado, mas o filho mais rebelde, o mais criticado, o mais desobediente, o mais inesperado. Esse filho vai parir, absolutamente sozinho, a partida do seu pai ou da sua mãe.
E dormirá em paz, quite com a saudade.
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