quarta-feira, 2 de abril de 2014


02 de abril de 2014 | N° 17751
MARTHA MEDEIROS

“Pedindo”

Estava caminhando pelo corredor do supermercado quando reparei na roupa da mulher à minha frente: ela estava de calça legging e um top de lycra. Naturalmente, dali iria para a academia de ginástica, ou havia acabado de voltar de uma. Como vou muito cedo ao súper, é comum eu encontrar várias mulheres em trajes esportivos, todos ajustados ao corpo por causa do material com que são confeccionados.

Foi então que me dei conta de que eu estava vestida do mesmo modo, já que em seguida teria aula de pilates. Contei: éramos algo em torno de sete mulheres no súper de manhã, de idades diversas, todas correndo risco de serem atacadas sexualmente assim que saíssemos de lá. Afinal, estávamos “pedindo”.

Corta para a saída do colégio da minha filha. O sinal bateu. Pelo portão, saem duas, três, nove adolescentes. Quase todas de short e blusa de alcinhas, aproveitando os últimos dias de calor pós-verão. Algumas iriam a pé para casa, outras de ônibus, circulando pelas ruas com pernas e barrigas de fora. Naturalmente, “pedindo”.

Acreditamos que as pessoas “pedem” para sofrer consequências. O menino que detesta futebol está pedindo para ser alvo de piadas homofóbicas, o ciclista que pedala numa rua movimentada está pedindo para ser atropelado, o turista que deixa seus pertences na areia enquanto mergulha no mar está pedindo para ser roubado. É um vício de linguagem que divide a culpa da violência entre todos – ninguém é vítima absoluta. Algo na linha “perdoa-me por me traíres”. Se você foi sacana comigo, é porque mereci.

Há uma grande diferença entre a contribuição que dou ao que acontece comigo – claro que isso existe – e o que é maldosamente confundido com contribuição a fim de atenuar a penitência do agressor. O resultado da pesquisa do Ipea que revelou que boa parte da população acredita que o modo de vestir de uma mulher justifica o estupro, é chocante e indefensável. Um homem que se prevalece desse argumento (“ela estava pedindo”), além de criminoso, é um covarde.

Da mesma forma, o fato de estarmos alarmados com os índices crescentes de corrupção e de a sociedade estar se organizando em manifestações contra o governo não significa que estejamos “pedindo” a volta da ditadura. Violentar a democracia também seria um estupro.


Má-fé. É ela que faz com que pessoas que não toleram a liberdade tentem reprimi-la usando a desculpa de estarem atendendo a “pedidos”. Liberdade ainda é uma palavra que assusta. Pessoas livres são consideradas irresponsáveis, por isso o impulso de enquadrá-las. Mas de responsabilidade os repressores entendem nada. Se entendessem, assumiriam os seus atos e pagariam integralmente por eles, em vez de tentarem repartir a conta da brutalidade com inocentes que estão apenas exercendo seu direito à cidadania.