03
de abril de 2014 | N° 17752
L. F.
VERISSIMO
Frente a frente
Eu
sou um oficial do Exército brasileiro. Estou numa sala de interrogatório,
cumprindo minha função, a de obter informações do inimigo. Por qualquer meio. Fui
designado para fazer isso pelos meus superiores e sou um bom soldado. O inimigo
a minha frente é um ser indefinido. Humano não é. É um subversivo, um
desalmado, uma coisa abjeta. Ele e os outros animais como ele querem que o
Brasil também seja uma coisa abjeta.
Se
ele não estivesse aqui, estaria na rua, matando e conspirando, construindo a
coisa abjeta. Mas está aqui. Frente a frente comigo. Tem a informação que eu
quero e não tem como fugir de mim. Minha função é arrancar a informação dele
por qualquer meio, para que o Brasil se livre deles. Para que a coisa abjeta não
se crie.
Ele é
um ser sub-humano, mas um ser sub-humano falante. E vai falar. Por qualquer
meio, vai me dizer o que eu quero saber. Tenho toda a autoridade de que preciso
para estar aqui, frente a frente com ele. Sou autorizado por cima, pelos meus
comandantes até o mais graduado, por baixo pelo meu próprio asco, e pela História.
Posso fazer o que quiser com o animal. É isto, enquanto salvo a pátria também
estou exercendo a minha liberdade ao extremo. Não há limite para o que estou
autorizado a fazer para arrancar dele a informação de que preciso, de que o
Brasil precisa para que eles não vençam. Posso até matá-lo, está previsto.
Por
descuido ou por intenção, não importa. Depois, é só cuidar para que ele nunca
seja identificado, quebrando sua arcada dentária e cortando seus dedos. Meu
poder sobre ele, sobre a sua vida e sua morte e a integridade final do seu cadáver,
é absoluto. Total. E ali está ele, um ser reduzido à dor e ao medo, um bicho
assustado. Talvez já tenha se borrado. Meu poder se estende até o movimento dos
seus intestinos!
Se
ele fosse um ser humano e não uma coisa abjeta, também teria uma noção filosófica
do momento que estamos vivendo, ele e eu. Este sentimento de liberdade completa
– a minha, do meu poder total sobre ele; a dele, da definição do seu destino
nas minhas mãos – seria de ambos, perante a História. Diante da posteridade.
A
posteridade... É, tem isto. Se a História não nos der razão, a posteridade vai
nos pedir explicações. Vai querer que eu tenha remorso. Vai insistir que eu
tenha remorso. Vai até me perdoar se eu tiver remorso. Mas se eu sou um sádico
que deve explicações, se o que me move não é o horror à coisa abjeta que ameaça
a pátria, então toda a cadeia de comando que começa lá em cima e termina no pau
de arara é sádica e deve explicações. E deles não se ouve um pio de remorso. Eu?
Estou apenas cumprindo ordens.