20
de abril de 2015 | N° 18138
DAVID
COIMBRA
Uma cusparada na
cara
O
Millôr Fernandes e o Chico Buarque não se davam. O Jaguar conta que, uma vez, o
Chico entrou num bar no Leblon, viu o Millôr sentado, foi lá e acertou-lhe uma
cusparada na cara. O Millôr, furioso, jogou a mesa em que estava e tudo o que
havia sobre ela no Chico, e errou. Aí o Chico deu mais uma cusparada nele e
acertou de novo. Aí o Millôr atirou outra mesa no Chico e desta vez acertou
também.
Entrevistei
o Millôr em seu estúdio em Ipanema, em 2007. Sobre o Chico, ele repetiu uma
sentença que o ouvira pronunciar em alguma entrevista:
–
Sempre desconfio de quem lucra com sua ideologia.
Fiquei
com essa frase para mim. Mas a adaptei. Digo o seguinte: sempre desconfio de
quem tem ideologia.
Não
ideia. Não ideal. Ideologia.
O
homem que se guia por dogmas os coloca acima das pessoas. Quem não partilha de
seus dogmas é contra ele.
Os
maiores homens da Humanidade, os que conseguiram os maiores avanços, as
conquistas mais profundas e duradouras, conseguiram por colocarem as pessoas
acima das ideologias.
Vou
pegar dois: Martin Luther King e Nelson Mandela.
Mandela,
antes de se tornar sábio, era um imbecil. Era um terrorista sanguinário, um
esquerdista radical, obtuso como todos os radicais. Precisou passar o período
de toda uma geração na cadeia para aprender a se tornar gente e, tornando-se
gente, compreendeu o óbvio: que ninguém constrói nada com destruição. Ao sair
da prisão, ergueu uma obra única na história da política mundial apenas com
gestos e palavras, e em apenas quatro anos. Estive na África do Sul e
testemunhei o poder do verbo de Mandela. Só com a palavra, ele conseguiu a
pacificação de um país que tinha tudo para atravessar séculos ardendo nas
labaredas da guerra civil.
Luther
King fez algo parecido, só que sem ter mandato. Luther King era uma espécie de
Ghandi dos negros americanos – defendia a resistência pacífica como método de
mudança. Sua nêmesis era Malcolm X, o pregador da violência. Ambos viveram aqui
perto de onde moro, em Boston. Luther King formou-se na Boston University,
Malcolm formou-se nos bares de blues e jazz. Examinando o que um e outro
conseguiram, resta claro que Luther King estava certo, e Malcolm, errado. O
próprio Malcolm reconheceu isso. Depois de uma viagem a Meca, voltou aos Estados
Unidos decidido a mudar de estratégia, mas não teve tempo: morreu assassinado
com 16 tiros no coração.
Todas
essas histórias mostram o mesmo: a verdadeira mudança só ocorre quando as
pessoas estão acima das ideologias, nunca o contrário. No caso do Brasil, essa
máxima é mais do que norma: é lei pétrea.
Lula
foi bem-sucedido quando compreendeu isso e amaciou o PT. Mas alguns confundiram
suavidade com permissividade, e as relações se tornaram ásperas, e muitos
brasileiros foram para os extremos. Assim não vai dar certo. Tenham todos,
Chicos e Millôres, Lulas e Aécios, tenham todos uma certeza: de que nada que
está nos extremos dá certo, no Brasil.