26
de abril de 2015 | N° 18144
MARTHA
MEDEIROS
Os Largados
Sem
computador, sem televisão e sem bateria
no
celular, me restou o ato heroico de ler um livro
Antigamente
eu rosnava a cada vez que ficava sem luz em casa. Agora até festejo, e não só pela
economia na conta. Dias atrás, a energia elétrica caiu às quatro da manhã e só retornou
perto do meio-dia. Sem computador, sem televisão e sem bateria no celular, me
restou o ato heroico de ler um livro do começo ao fim, de um fôlego só. Por
sorte, Os Largados, do italiano Michele Serra.
Divertir
e comover. Combinação diabólica plenamente atingida pelas 125 páginas que
contam a história de um pai exasperado com o filho de 19 anos que vive entocado
com seus gadgets eletrônicos. Um guri que não conversa, se veste com molambos,
come no sofá, não vê a cor do céu, enfim, desperdiça sua juventude.
Enquanto
o pai busca caminhos para se conectar com essa criatura amorfa (caminhos
inclusive no sentido literal: acredita que se conseguir convencer o garoto a
acompanhá-lo numa trilha, nem tudo estará perdido), vai elaborando mentalmente
um livro que sonha em escrever sobre uma fictícia Guerra Mundial entre Jovens e
Velhos. E é aí que Os Largados diz a que veio.
É só
olhar para trás e lembrar as inúmeras diferenças que tínhamos com nossos pais. Quem
não? O conflito de gerações é um clássico na vida de qualquer um. Porém, essa
guerra se dava no mesmo campo de batalha. Podíamos pensar de forma distinta,
mas comíamos todos à mesma mesa, a música vinha do único equipamento de som
instalado na casa, fazíamos passeios familiares, conversávamos – ou discutíamos,
brigávamos, que seja, mas dentro de um universo comum.
Não é
mais assim. Diz o pai ao filho, no livro: “Agora tenho a sensação – a suspeita?
o terror? – de uma mutação tão radical que dificilmente, um dia, poderemos nos
reconhecer, você e eu, no mesmo prazer”. E continua: “Partiu-se uma corrente – da
qual eu sou o último elo”.
A
questão é: que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê,
que se comunica à distância com os outros, que perdeu o idealismo, que fica
zonza e por vezes até paralítica diante das variadas opções disponíveis de
sexo, amor, carreira?
Estão
100% plugados, mas cada vez mais desconectados de nós, os últimos analógicos
desta era. Largados num novo mundo que está sendo construído à nossa revelia. Não,
o livro não é pessimista ou trágico, ao contrário. É extremamente engraçado,
mas com uma graça firmemente apoiada na inteligência, na ironia e na reflexão. E
dá o devido espaço a uma emocionante descoberta: nesta guerra entre jovens e
velhos, a razão circula entre os dois exércitos e tem múltiplas formas de se
apresentar.
Leia,
porque o livro é muito bom. E também porque livros, este ou qualquer outro,
continuam sendo fornecedores de uma energia que se mantém on em qualquer
circunstância. O cérebro não cai.