12
de abril de 2015 | N° 18130
LUÍS
AUGUSTO FIECHER
Uma rodada pelo
mundo
Um famoso estudo do Pierre Bourdieu mostra, de
passagem, que quanto mais provincianos, mais os jornais têm notícias locais, e
vice-versa, quanto menos identificados com o local, mais os jornais falam de
coisas do estrangeiro. Verdade trivial, que não se resume à distância entre
cidades e países – dentro de uma mesma cidade grande, por exemplo Paris, há
jornais que só falam de futebol e da política local.
Tomo
um exemplo prático. Vivendo na França, assinei um jornal cosmopolita local, o
Le Monde. Textos excelentes e cobertura internacional magnífica, é jornal de
uma capital mundial, escrito por e para gente que sabe que lhe cabe pensar em
escala ampla.
Vejamos
a edição do dia 3 de abril. Uma das maiores matérias fala sobre a guinada
política à direita. Mas há textos sobre a seca na Califórnia, o caso do avião
alemão em que morreram 150 pessoas, o tema da energia nuclear no Irã, todo um
recorrido sobre a crise na Ucrânia. Parecido com os grandes jornais
brasileiros, salvo pela abrangência, profundidade e detalhamento das matérias,
sempre feitas por correspondentes do próprio jornal, com apuração dos fatos in
loco.
Mas
não é só no espaço que vai longe o jornalismo não localista; é também no tempo.
A mesma edição trazia matérias detalhadas sobre três questões, três objetos,
três tempos tão distantes para o cotidiano de um brasileiro, que chegam a dar
certa falta de ar para um leitor como eu.
Com
chamada de capa, uma versava sobre a restauração da megafamosa escultura Vitória
de Samotrácia. Oito milhões de visitantes a admiram, cada ano, no alto de uma
das principais escadas de acesso ao Louvre. Agora repuseram suas asas e a
recuperaram, ao custo de, arrâm, 4 milhões de euros. A matéria elucida vários
aspectos de sua história (foi descoberta por um francês na Samotrácia, em 1883,
e enviada ao museu parisiense) e lembra que ela é uma, apenas uma das estátuas
dedicadas a Nike – não diga naike, mas nikê –, a deusa da vitória.
Outra
reportagem dá conta de “Little foot”, um fóssil de hominídeo que acaba de ser
reavaliado em sua antiguidade – ele tem 3,67 milhões de anos, datação publicada
agora, em abril. A África do Sul, onde se achou o material, entra de novo na
rota do debate sobre os começos da humanidade. Descoberto em 1994, o esqueleto
só foi todo desenterrado em 2010, e sua importância se deve ao fato de guardar
90% do corpo original, algo raríssimo e central para os estudiosos elucidarem
umas quantas dúvidas sobre o nosso passado remoto.
Das
três viagens aos tempos antigos presentes em grandes reportagens nesta edição,
a que mais me pegou pelo fígado versa sobre pilhagem. Dezenas de milhares de
objetos de arte foram roubados de sítios arqueológicos no Iraque e na Síria, na
última década. Alguns provêm de entre o terceiro e o quinto milênios antes de
Cristo. Fico sabendo que, depois da segunda guerra do Golfo, em 2003, a União Europeia interditou o
comércio de materiais iraquianos, e depois de 2013 essa interdição se estendeu
aos oriundos da Síria. Mas bem, contrabando continua existindo. A CIA estima
que o Estado Islâmico, a organização terrorista que sombreia o horizonte da
humanidade, terá movimentado entre 6 e 8 bilhões de dólares com esse comércio
ilegal.
Uma
burguesa semiculta de um rincão estadunidense, digamos, compra uma lamparina de
3 mil anos de um leiloeiro inescrupuloso, e com isso alimenta a máquina de
guerra em que, numa dessas esquinas da vida, seu filho vai lutar.
Nas
quintas-feiras como o dia 3 de abril, o Le Monde tem um caderno de livros, com
resenhas e críticas. Neste dia, trazia também um dossiê sobre questões
relativas a bibliotecas na França. O tom geral é festivo: mostra que as
bibliotecas do país estão se aparelhando para oferecer seus préstimos também
aos domingos, e com wi-fi livre (eles pronunciam “uifi”) e tudo que a
tecnologia informática tem de bom. Isso, celebra a matéria, ajuda na coesão
social.
Mas
uma voz se levanta em contrário: uma experiente bibliotecária, que sob
pseudônimo publicou agora um livro, O Crepúsculo das Bibliotecas, não é favorável
à abertura aos domingos, nem à obsessão por informatizar tudo. Para ela, essas
novidades significam uma ruptura com a civilização do livro e uma rendição à
lógica do acesso ilimitado a tudo, a qualquer hora. Consumismo, em suma.
Coisas
difíceis de pensar, para nós, no Brasil, que quase nem bibliotecas tradicionais
temos, e que vivemos num autocentramento narcisista que muito contribui para a
pobreza do debate público.