11
de abril de 2015 | N° 18129
PALAVRA
DE MÉDICO
J.
J. Camargo
A verdade incompleta, mas
generosa
Certas descobertas ruins devem ser evitadas,
especialmente quando não fazem mais do que ampliar o sofrimento
Quando
a morte chega pelos caminhos mais insuspeitados e, traiçoeira, ceifa uma pessoa
jovem, o impacto sobre aquela família é de uma perplexidade devastadora. Tudo
parece irracional quando a imponderabilidade de um acidente inverte a ordem
natural das coisas e debruça um pai zeloso sobre o corpo robusto do filho de 20
anos que tinha apenas um arranhão no ombro e um pequeno hematoma do supercílio.
Com
ausência total de reflexos, a capacidade de respirar substituída por uma
máquina e a temperatura corporal de 34°C ,
o diagnóstico clínico de morte encefálica estava evidente, o que foi
prontamente confirmado pela arteriografia que demonstrou que, por conta do
intenso inchaço do cérebro oprimido dentro da caixa craniana, houvera
interrupção da entrada de sangue, caracterizando a irreversibilidade. Este é o
diagnóstico mais seguro em medicina: se as células nervosas morrem depois de
três a quatro minutos sem oxigênio, é fácil perceber que, com o transporte de
oxigênio interrompido definitivamente, não há a menor chance de sobrevivência.
O
pai não sabia disso muito bem e queria eliminar todas as dúvidas antes de
autorizar que se cumprisse a vontade do filho, expressa há uns dois anos numa
reunião festiva da família e reiterada outras vezes. Amigo de infância do pai,
o médico da família foi chamado para ajudá-lo nesta hora que a providência – ou
o que seja que gere o destino das pessoas – devia poupar todos os pais, se não
houvesse outro motivo, por compaixão.
Tudo
explicado e entendido, envolveram-se num abraço solidário e, depois de um tempo
de silêncio compartilhado, o pai, com o queixo trêmulo, pediu que
providenciassem a doação de órgãos, numa desesperada tentativa de dar alguma
racionalidade à estupidez da morte: “O meu gordo, caridoso como era, ficará
feliz de saber que ajudou outras pessoas a continuar a vida que o destino lhe
roubou”.
Feitos
os testes sorológicos, uma descoberta: o anti-HIV era positivo, assim como as
sorologias para a hepatite B, o que tornava inviável a doação.
Quando
foi anunciada a impossibilidade, uma nuvem de decepção desceu sobre ele, e as
lágrimas foram estancadas para entender o porquê. Ouviu, então, o significado
da hepatite B na contraindicação, o que naquele instante pareceu o mais
aceitável, porque o médico amigo decidira poupar-lhe da informação de que a
combinação viral encontrada era altamente sugestiva do uso regular de drogas
venosas.
Certas
descobertas ruins devem ser evitadas, especialmente quando não fazem mais do
que ampliar o sofrimento. Ao ver o gordo, bonito e forte, sendo vestido para o
velório, não havia dúvida de que aquele impulso fora generoso. Desceram a
escada, abraçados. Ele aliviado porque fizera o máximo para cumprir o desejo do
filho, e o amigo convencido de que, às vezes, a verdade total é apenas um
injustificável exercício de crueldade. Já havia dor suficiente a dilacerar o
peito daquele pobre pai.
E a
omissão era ética? Havia tempo para pensar nisso depois. A morte instalada
elimina a pressa.
Cirurgião
torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto
Alegre