quarta-feira, 29 de abril de 2015


29 de abril de 2015 | N° 18147
PEDRO GONZAGA

TOCA RAUL

Por vezes parecia não ser mais do que um espectro, feito de etílico ectoplasma, velho fantasma dos bares, um ente que se erguia ao final das músicas, no interior e nas capitais. Bastava morrer o som de palha em brasa dos aplausos que a voz se fazia ouvir. Para além do esoterismo, caberá a meus colegas músicos (talvez aos antropólogos) explicar não esta presença – torpe flor da natureza humana –, mas o conteúdo de seu grito: Toca Raul.

Sendo parte da Hard Working, uma banda de música soul, foi-me sempre incompreensível que depois da Andrea Cavalheiro incorporar a Aretha Franklin (já que falávamos em espíritos), levando a plateia à loucura, bastasse um instante de silêncio para que se ouvisse o nefasto pedido. Que ainda se erguia por mais dois ou três números.

Depois, de súbito, calava-se. Do fundo do palco, descansando os dedos no sax, eu cogitava sobre o destino do demandante. Um mata-cobra de alguém? A bênção de um coma alcoólico? Uma retirada estratégica até a próxima batalha? O certo é que o show sempre continuava, sem mais interrupções.

Passo à tese. Em todo agrupamento humano haverá indivíduos que pedirão alguma coisa semelhante ao toca Raul. Nosso tempo, no entanto, elegeu transformar esses indivíduos em seu tema principal. Milhares de pessoas em marcha são menos importantes do que uma que segura ou pinta em seu corpo dizeres esdrúxulos. No show, isso equivaleria a parar a apresentação por causa de um sensaborão (prejudicando a todos os demais), ou considerar que o público é representado por ele.

Pedir a intervenção da segurança resolveria? Não produziria maior distúrbio? Todos sabem (ou costumavam saber) que ele é o eterno chato, alguém que será chato ali, em casa, no trabalho, enquanto se reproduz. Ele já cruzava as savanas da África há milhão de anos em busca de atenção.

Ele é um teste à nossa humanidade. Mas façamos o seguinte esforço. Pensemos que nos cabe chamar a segurança. Tornarmo-nos-íamos os amplificadores de sua chatice? Ou o coro fértil para o mais perigoso entre todos os brados, o da intolerância?

Por mim, podemos rir e tocar a próxima canção. Qualquer coisa, chamemos os Caça-fantasmas.