sábado, 31 de dezembro de 2022


31 DE DEZEMBRO DE 2022
RETROSPECTIVA 2022

RETROSPECTIVA 2022

O ano de 2022 deverá ser lembrado nos livros de História como o período em que a sociedade brasileira se partiu em duas. Duas facções políticas, demarcadas pelo uso do verde-amarelo ou do vermelho, foram cindidas pela disputa eleitoral em busca da Presidência da República de forma inédita desde a redemocratização do país.

A cizânia política cortou amizades de quem não partilhava a mesma preferência partidária, afastou parentes e culminou em atos de violência como o assassinato de um guarda municipal e dirigente petista em Foz do Iguaçu, no Paraná, em meados de julho. Marcelo Arruda foi abatido a tiros durante sua festa de aniversário de 50 anos, decorada com a imagem do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, por um radical bolsonarista que acabou agredido a chutes por participantes do evento depois dos disparos. 

Para cientistas políticos, as animosidades devem se reduzir à medida que o calendário se distancia da data da eleição, mas há dúvidas se o tempo também conseguirá cicatrizar o corte que se abriu no tecido social da nação.

- Creio que essa polarização não veio para ficar, porque o país não suporta uma coisa dessas. Uma coisa é a polarização política, mas o problema é que ela veio acompanhada da disposição à violência. Pelo menos, espero que não tenha vindo para ficar. O desafio será tomar medidas explícitas e sistemáticas para distensionar politicamente o país, como a revisão da política que facilitou o acesso às armas e a proteção de populações que foram muito hostilizadas, como os indígenas e quem produz ciência e cultura - avalia o cientista político Hermílio Santos, coordenador do Centro de Análises Econômicas e Sociais da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS).

A cientista política e professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Maria do Socorro Sousa Braga é um pouco menos otimista:

- O resultado eleitoral mostrou que o grupo que estava no poder sai ainda bastante fortalecido. Como a sociedade está muito dividida, acredito que essa divisão vai permanecer. Apesar disso, sob o ponto das forças políticas no Congresso, a polarização deve se reduzir porque o grupo que deixa o poder não terá as mesmas moedas de troca para agregar os partidos.

A cisão colocou de um lado majoritariamente eleitores homens, pessoas de renda mais elevada e a população evangélica a favor de Jair Bolsonaro e, de outro, mulheres, a intelectualidade e a fatia mais pobre da sociedade em prol de Lula. A pequena diferença registrada no segundo turno - 50,9% a 49,10% em favor do petista - demonstra o delicado equilíbrio entre as alas políticas, que também se alimentam da rejeição ao representante do campo oposto.

Esse cenário, que já transparecia nas pesquisas de opinião, se materializou nas manifestações de rua. Os bolsonaristas realizaram atos de massa ao longo do primeiro turno e fizeram das festividades do 7 de Setembro um exercício de demonstração de força. O então candidato à reeleição trocou o tradicional tom institucional dos discursos de seus antecessores nessa data por uma retórica salvacionista que aprofundou o clima bélico:

- Sabemos que temos pela frente uma luta do bem contra o mal, um mal que perdurou por 14 anos em nosso país - declarou a uma multidão em Brasília.

Lula usou as redes sociais para responder, em vídeo:

- Em vez de levar aos brasileiros uma mensagem de paz, união e esperança, o presidente da República utilizou a data para fazer campanha eleitoral e ofender seus adversários.

As manifestações favoráveis ao PT ganharam as ruas de forma mais visível nas semanas seguintes, por meio de comícios e caminhadas nas principais cidades brasileiras.

A disputa encarniçada puxou para a briga no campo político até celebridades e artistas. O cantor Gusttavo Lima, apoiador de Bolsonaro, teve seu nome vaiado todas as vezes em que foi mencionado durante o prêmio Multishow, por exemplo, enquanto Gilberto Gil chegou a ser intimidado por bolsonaristas no Catar, durante a Copa do Mundo.

A camisa da Seleção Brasileira também acabou sequestrada pela contenda ideológica passando a uniformizar os defensores do presidente, antes da eleição, e os manifestantes que pediram intervenção militar na frente dos quartéis depois de contados os votos que deram a vitória a Lula. A Copa do Mundo, iniciada dias após o segundo turno, serviu para resgatar a tradicional camiseta amarela do cativeiro político.

Até o presidente eleito se deixou fotografar utilizando o uniforme da CBF ao lado da mulher, Janja, em meio à competição. A equipe brasileira passou a concentrar a atenção e a torcida dos brasileiros, o que acabou gerando inconformidade em uma parte dos acampados pró-intervenção. Por meio de redes sociais, circularam apelos para a vestimenta padrão nos protestos substituir a chamada amarelinha por peças brancas ou camufladas.

Hermílio Santos sustenta que o clima de tensão que caracterizou 2022 também foi amplificado pelas ameaças ao sistema democrático mesmo antes dos protestos nos quartéis.

- Foi um ano de muita incerteza política, em que se gastou muita energia por não se saber se o resultado das urnas seria respeitado. Desde a primeira eleição após a ditadura, em 1989, nós jamais havíamos tido esse tipo de preocupação, que gerou instabilidade na sociedade, na economia e no setor privado - analisa o professor da PUCRS.

Outras incertezas serão carregadas 2023 adentro, como a capacidade da terceira gestão de Lula à frente do Planalto de manter a governabilidade diante da contrariedade de expressiva fatia dos brasileiros e de um Congresso em parte alinhado a Bolsonaro.

- Um dos desafios será estabelecer relações com uma parcela dos parlamentares que só conhece uma forma de lidar com governos, que é ter acesso facilitado ao Tesouro. Como manter a governabilidade sem se tornar refém do Centrão ainda é um grande mistério - sustenta Santos.

No outro lado do espectro ideológico, uma das questões para se prestar atenção ao longo dos próximos meses será a disposição de Bolsonaro de deixar para trás o fardo da derrota e se manter como líder popular da extrema direita. Nas semanas seguintes à derrota para Lula, o ainda presidente se isolou e mostrou-se triste nos poucos eventos oficiais de que participou a ponto de chorar diante das câmeras.

Para Maria do Socorro, será preciso altas voltagens de energia para manter a fidelidade da base bolsonarista sem as facilidades do poder emanado de Brasília.

- Uma coisa é ser presidente e estar pautando os assuntos do dia e da semana. Sem estar em arenas de poder, ou na mídia, teremos de ver como o clã Bolsonaro vai atuar, se vai seguir ativo nas redes sociais. A extrema direita costuma trabalhar com alta intensidade de mobilização. Sem isso, corre o risco de ir diminuindo aos poucos - acredita a professora da UFSCar.

"MODO GOBLIN"

Esta foi eleita a "palavra de 2022" pela Oxford University, na tradicional eleição realizada no Reino Unido

Significa, segundo a própria instituição, "um tipo de comportamento que é assumidamente autoindulgente, preguiçoso, desleixado ou ganancioso, geralmente de uma forma que rejeita normas ou expectativas sociais"

Trata-se de um termo que viralizou a partir de um tuíte satírico em cima de uma manchete falsa que citava a atriz Julia Fox dizendo que ela e o rapper Kanye West terminaram o relacionamento porque ele não gostava quando ela "entrava em modo goblin"

Os termos do ano segundo a Oxford University têm refletido mudanças comportamentais, e nos anos anteriores vinham sendo relacionados invariavelmente à pandemia, às turbulências políticas e às relações sociais em tempos de tecnologia digital - em 2016 foi "pós-verdade"; em 2017, "fake news"; em 2018, "tóxico"; em 2019, "emergência climática"; em 2021, "vax" (termo em inglês relacionado à "vacina")

Em 2020, foram eleitos termos específicos para cada mês, incluindo "coronavírus", "lockdown", "cancelamento", "vidas negras importam" e "impeachment" (por conta do processo a que Donald Trump foi submetido nos EUA

Expressão que se tornou cotidiana no vocabulário dos brasileiros ao longo de 2022, o orçamento secreto tinha previsão de somar mais de

R$ 19 bilhões

segundo a proposta de lei orçamentária encaminhada pelo Executivo ao Congresso. São as chamadas emendas do relator do orçamento da União, que foram objeto de debate na campanha eleitoral e de denúncias na imprensa. Já no final do ano, o STF considerou tais emendas ilegais. 

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