BARBARA
GANCIA
Geni joga pedra na Maria da Penha
Uso
de termo "merece" em título de pesquisa do Ipea sobre violência
confere selo de incompetência à mulher
A
pesquisa do Ipea que tanto bafafá causou desde que surgiu na semana passada não
despertou nesta humilde datilógrafa uma insatisfação extra.
Para
falar a verdade, ao tomar conhecimento de que 65,1% dos entrevistados (entre
homens e mulheres) concordam que mulheres com roupas provocantes "merecem
ser atacadas", não dei a menor bola.
Sabe
por quê? Porque o que o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada nos
contou não é novidade. Não há nada ali que eu já não soubesse, intuísse, ou tivesse
sentido na carne.
Não
será surpresa para uma nova-iorquina constatar que 63% das mulheres que usam
regularmente o metrô de Manhattan já sofreram alguma forma de abuso. E olha que
isso é lá no hemisfério Norte. Basta estar viva para conhecer a realidade. Qual
a mulher no mundo que se sente confortável, mesmo vestindo hábito de monja,
para andar na periferia de qualquer cidade de madrugada?
Na
Arábia Saudita, onde não há periguetes atirando os peitos no colo de ninguém, a
opinião pública consegue encontrar respaldo na mesma ladainha de "jogo de
sedução" para explicar índices altos de estupro.
Sinta
só: uma pesquisa realizada na capital, Riad, atestou que 86,5% da população
relaciona o uso excessivo de rímel a casos de violência contra mulheres. Vai
ver elas andam nas ruas provocando os rapazes a piscadelas. Tudo a ver com a
moda pornô do "funk do rímel", "rímel ostentação" ou a
onda do "rímel da cachorra". Só mesmo apedrejando essas sem-vergonhas
até a morte, yes?
Se
deixar, daqui a pouco começam a vender camelo e gênio da lâmpada com
propaganda que objetifique o olho e a pestana. Elizabeth Arden que nos acuda!
Exagero,
meu leitor de cílios fartos, para enfatizar como estivemos atirando no alvo
errado a semana toda. Tudo bem ficar "indignado" com o resultado da
pesquisa, eu até entendo seu desgosto. Mas, para mim o que pegou mesmo foi a
naturalidade com que sociólogos e analistas engoliram o uso da palavra "merecem"
do título do estudo.
Poderíamos
ter caminhado para outras paragens usando os mesmíssimos dados. Só que o "merece"
acabou servindo quase como sentença, atestado emitido pelo punho da opinião pública
para crucificar oficialmente a mulher.
Dá a
impressão de que o Ipea resolveu fornecer um instrumento para sancionar a violência.
É verdadeira
a condição de mulher casada que não suporta periguete solteira rondando o seu
terreiro. E ninguém discute os valores de uma sociedade em que o sujeito trata
a mulher de mucama e piranha, para servi-lo esteja ela ou não disposta. Afinal,
parece que abrir as pernas de vez em quando em troca de soldo mensal ainda é bom
negócio. Basta olhar ao redor.
É fato
que a solteira segue ocupando ranking inferior em relação à casada na escala
de valores. Ou não? O "merece" da pesquisa do Ipea se justifica também
quando ela sai na rua para protestar sua condição carregando o cartaz "Eu
não mereço ser estuprada".
Quem
"não merece" trata de abandonar o papel de vítima e assume seu lugar
em pé de igualdade. De objeto, passa a ser sujeito e dono do seu nariz e do seu
desejo. Não usa da sedução para garantir sustento. E sai do papel de "senhorita"
virginal ou "senhora" respeitável, dependendo do status que consta
nos seus documentos.
Temos
uma das leis para proteger contra violência mais avançadas do mundo, a Maria da
Penha. Mas de que serve, se insistimos em vestir a carapuça de Geni?