sábado, 2 de maio de 2015


02 de maio de 2015 | N° 18150 ARTIGOS
RODRIGO LOPES

VIDA QUE VIVE

A cena era dura, porque dura é a morte. Mas, naquela ocasião, em uma estrada empoeirada, entrada de Porto Príncipe, a morte ganhava um toque de delicadeza: o cadáver de uma mulher, um dos 316 mil mortos do terremoto que devastou o Haiti, em janeiro de 2010, era transportado na traseira de uma caminhonete. Meus olhos foram imediatamente atraídos para o rosa de suas unhas dos pés a contrastar com a aridez do cenário.

Corta a cena! Retrocedamos três anos, agosto de 2007: saída do vilarejo de Pisco, interior do Peru. Depois de uma madrugada de trabalho, acompanhando o resgate dos corpos do interior de uma igreja destruída por outro terremoto, vejo um caminhão aproximando-se do meu carro. Ao redor, mulheres, crianças e cães correm para alcançar sacos de comida atirados por voluntários. Choro de emoção.

Voltamos aos nossos dias. Observo a tragédia do Nepal antevendo um ciclo jornalístico conhecido: no primeiro dia, o estupor do desastre. Pessoas correm para um lado e outro, mortes e destruição por todos os lados, resgates; no segundo, a ajuda internacional começa a chegar ao país arrasado, começam os saques; no terceiro, aparece o risco de epidemias.

É preciso enterrar os mortos urgentemente. Metrópoles tornam-se cidades de caixões. Ou esburacadas por valas comuns. Cumprem-se as famosas 72 horas, tempo máximo que os especialistas preveem que uma pessoa é capaz de sobreviver sob escombros. Nos quarto e quinto dias, quando o assunto começa a desaparecer do noticiário, surgem os milagres. Imagens como as do bebê Sonit Awal, de cinco meses, retirado dos escombros de Muldhoka, a leste de Katmandu. O rosto está coberto de poeira de escombros, é quase difícil identificar se seria um bonequinho de brinquedo ou um ser humano. Olhinhos fechados. Está vivo.


Se a ciência no século 21 ainda não é capaz de prever terremotos – tsunamis são mais fáceis –, resta convivermos com esses fenômenos. Não é a natureza que está em lugar errado. Somos nós que construímos cidades onde a vida urbana um dia pode ser aniquilada: Anatólia, San Andreas, fissuras entre placas tectônicas que um dia, infelizmente, vão matar populações na Turquia e na Califórnia. Uma consolação: mesmo no horror, aparecem a delicadeza de unhas pintadas, a solidariedade do homem do caminhão de comida e os bebês que contrariam as estatísticas. Vida que insiste em seguir vivendo.