sábado, 31 de janeiro de 2015


01 de fevereiro de 2015 | N° 18060
L. F. VERISSIMO

Sonoplastia

Carlos Alberto e Maria Cristina estão num motel. Toca o telefone celular que ele deixou na mesinha de cabeceira ao lado da cama redonda. É a mulher de Carlos Alberto, Cynara.

CARLOS ALBERTO – Oi, bem.

CYNARA – Onde você está?

CARLOS ALBERTO – Ora, onde eu estou. Onde é que eu estou, todos os dias, a esta hora? Num engarrafamento.

CYNARA – Vai demorar muito?

CARLOS ALBERTO – E eu sei? Há meia hora que eu estou parado aqui. O trânsito não anda. Só andam os motoboys. Você não ouve a buzina deles, passando?

CYNARA – Não.

CARLOS ALBERTO (PARA MARIA CRISTINA, TAPANDO O FONE) – Faz barulho de boy.

MARIA CRISTINA – Muuuu...

CARLOS ALBERTO (TAPANDO O FONE OUTRA VEZ) – Mu, Maria Cristina? Mu?!

MARIA CRISTINA – Você disse barulho de boi.

CARLOS ALBERTO – De boy, Maria Cristina. De motoboy passando e buzinando!

MARIA CRISTINA (IMITANDO BUZINA) – Bi, bi. Bi-bi. Bi-bi. Bi...

CARLOS ALBERTO – Ouviu as buzinas?

CYNARA – Eu ouvi um “muuuu”.

CARLOS ALBERTO – Acredite ou não, acabou de passar uma vaca por aqui. Tem vaca na pista, dá pra acreditar? O trânsito desta cidade está tão bagunçado que tem até vaca solta...

CYNARA – Carlos Alberto...

CARLOS ALBERTO – Olha, apareceu um guarda. Ó seu guarda! (PARA MARIA CRISTINA, TAPANDO O FONE:) Faz voz de homem. Finge que é um guarda.

MARIA CRISTINA (COM VOZ GROSSA) – Pois não, cavalheiro.

CARLOS ALBERTO – Por que está tudo parado? Estou aqui há meia hora, no mesmo lugar. Houve alguma coisa?

MARIA CRISTINA (COM VOZ DE GUARDA) – Capotou um caminhão carregado de animais, ali na frente. Espalhou bicho pra tudo que é lado.

CARLOS ALBERTO – Boa, boa. Quer dizer, que coisa horrível. Então era uma vaca mesmo que passou por aqui. Eu já estava pensando que era alucinação minha. Esse trânsito enlouquece qualquer um!

MARIA CRISTINA (COM OUTRA VOZ) – Vai uma água aí, doutor?

CARLOS ALBERTO – Não, obrigado.

MARIA CRISTINA (COM OUTRA VOZ) – Biscoito. Olha o biscoito.

CARLOS ALBERTO – Não. Ouviu só, Cynara? É só parar o trânsito que aparece vendedor de tudo...

MARIA CRISTINA – Bi-bi, bi-bi, bi-bi...

CARLOS ALBERTO – E não para de passar motoboy!

MARIA CRISTINA – Mé...mé...mé...

CYNARA – O que é isso?

CARLOS ALBERTO – Ovelhas. Devem ser do caminhão que capotou. Nós estamos cercados de ovelhas.

CYNARA – “Nós”, Carlos Alberto?

CARLOS ALBERTO – Eu. Eu e o carro. Eu e os outros motoristas.

CYNARA – Você está com alguém no carro, Carlos Alberto?


CARLOS ALBERTO – Olha, o trânsito começou a andar. Vou ter que desligar!