terça-feira, 27 de janeiro de 2015


27 de janeiro de 2015 | N° 18055
DAVID COIMBRA

Mulheres gordas e mulheres retas

Um americano criou um blog listando 20 coisas que odeia no Brasil e nos brasileiros. Ele morou no Brasil e, está claro, não gostou.

Eu poderia listar 20 coisas ruins dos Estados Unidos e dos americanos, mas isso não seria inteligente. Prefiro ver o que há de bom nos Estados Unidos e nos americanos. Para sorver melhor o tempo em que vivo aqui, sim, mas também, e principalmente, por pensar no Brasil. O que há de certo no Norte que poderíamos aplicar no Sul? É o que estou sempre me perguntando. Não que minhas conclusões venham a fazer a menor diferença, mas, puxa, sou brasileiro e me interessa pelo menos especular sobre o bem do Brasil.

Os Estados Unidos não são melhores do que o Brasil, os americanos não são melhores do que os brasileiros, mas, não há dúvida, os americanos vivem melhor do que os brasileiros. Por quê? Por vários motivos, mas um mais do que todos: os americanos, em geral, aceitam o seu acordo social. Existe um parâmetro aqui, que é o cumprimento da lei e das normas de convívio.

Quando eles estão insatisfeitos com algo, como agora com o comportamento da sua polícia, eles tentam mudar a lei. Não desrespeitam a polícia nem a lei; tentam mudá-las. Quer dizer: as instituições são preservadas, ainda que sejam imperfeitas. Isso dá segurança às pessoas, porque elas sabem o que esperar do Estado e dos demais cidadãos.

Vejo isso de bom nos Estados Unidos, entre outras qualidades. Pena que o americano do tal blog não tenha enxergado pelo menos uma característica do povo brasileiro que o torna distinto de todos os outros povos do mundo: no Brasil, a despeito da fragilidade do nosso acordo social e da insegurança das nossas normas de convívio, as pessoas são naturalmente tolerantes. Não que o brasileiro seja cordial. Não é. É tolerante.

A respeito do brasileiro cordial, aliás, essa afirmação de Sérgio Buarque de Holanda em seu clássico, Raízes do Brasil, foi mal interpretada. Buarque de Holanda não fazia um elogio ao brasileiro; na verdade, quase fazia uma crítica. A cordialidade, no caso, vinha do sentido etimológico da palavra: vinha do coração. Só que essa cordialidade no âmbito pessoal é um predicado: é a tolerância de que falo. Na esfera pública é um defeito: é a permissividade dos nossos governantes e o comportamento individualista do povo, o que horrorizou o americano esse.

Mas o americano não viu, e muitos brasileiros não veem, que a nossa sociedade aceita as diferenças sem precisar de doutrinações. Repare nos casos da gordinha de Canguçu, que desfilou na passarela do Garota Verão, e da Fernanda Gentil, que não tem bunda, ou está sem bunda, e entrou num biquíni e foi à praia no Rio. Quando um site escreveu, grosseiramente, que a Fernanda Gentil “é reta”, o Brasil se levantou em sua defesa.


Quando a gordinha de Canguçu pisou na passarela, o público se levantou para aplaudi-la e ovacioná-la. Melhor ainda: tanto Fernanda Gentil quanto a gordinha reagiram com bom humor aos eventuais comentários de mau gosto sobre seus corpos. Nenhuma das duas tremulou bandeiras, nenhuma das duas deu discurso, se revoltou ou bradou contra o preconceito da sociedade, blá-blá-blá. Uma lição de tolerância de ambas e da sociedade em geral. Tudo muito natural. Tudo muito bonito. Tudo muito brasileiro.