sábado, 17 de janeiro de 2015


18 de janeiro de 2015 | N° 18046
ANTONIO PRATA

A metamorfose – com barreiras

Quer ler um livro e cuidar de uma criança de um ano e meio, ao mesmo tempo? Pergunte-me como.

“Quando certa manhã (...)”. Marina, que que cê tá pondo na boca? Dá aqui! O papai já falou! Não é pra pôr o Lego na boca! “Quando certa manhã Gregor Sansa (...)”. Que, filhota? Cocô? Deixa eu ver essa fralda. Não, não tem cocô. “Quando (...)”. Ah, coco! Água de coco? Tá com sede, tá? Vamos pegar água. “Quando certa manhã Gregor Sansa acordou de sonhos intraquilos (...)”. Não, Marina!

É pra beber a água, não é pra virar a caneca! Marina! Não! Isso, água é na boca, Lego é pra brincar, ó, hmmmmm, que delícia a água, né? “Quando certa manhã Gregor Sansa acordou de sonhos intraquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num (...)”. Não, Marina! Que que o papai falou?! É, não adianta chorar, agora, eu avisei, molhou o vestido todo, né? Calma, vem cá, vamos botar uma roupa seca. “Quando certa manhã Gregor Sansa acordou de sonhos intraquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”

Não, Marina, não vou pôr filminho. Não é hora de filminho, você sabe disso. Olha aqui o livrinho da vaca! Como é que a vaca faz? Muuuu! “(...) encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” Não quer o livrinho da vaca? E o livrinho do trem? Piuíííí! “(...) metamorfoseado num inseto monstruoso.” É, o livrinho do trem! Piuíííí! Isso. Todo mundo lendo livrinho, ó só que legal! “Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, (...)”.

Não, Marina! Não é pra rasgar o livro! Arrancou a chaminé do trenzinho. Cadê a chaminé do trenzinho, Marina? Abre a mãozinha, abre? Abre a boca! Não é engraçado, Marina! Abre a boca! Dá aqui, dá! Papai já falou, não é pra pôr nada na boca! Não gostei!

Não, não vou pôr filminho, agora é hora de brincar. Olha aqui a boneca da Peppa. Bota a Peppa na cadeirinha. Isso! “Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça (...)”. Não, Marina, filminho é só depois do jantar. Brinca mais com a Peppa. “(...) viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta (...)”... Não, o papai não vai pegar.

Você jogou a Peppa na varanda, você pega a Peppa na varanda, né? “(...) no topo do qual a coberta prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha.”. Quer a Peppa, pega a Peppa, Marina, já falei. “Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume (...)”. Aqui a Peppa, aqui! Mas não joga de novo, combinado? “(...) lastimavelmente finas em comparação com o volume (...)”. Que foi, Marina? Não, Marina. Não é hora de filminho.

Pode chorar a vontade. “(...) lastimavelmente finas em comparação com o volume do corpo, tremulavam desamparadas (...)”. Não chora, Marina. Calma, Marina. “(...) tremulavam desamparadas (...)”. Não grita, Marina! Péra, Marina! “Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo”...


Tá bom, Marina, aqui, o papai vai pôr o filminho. “Meu pintinho amarelinho”, “(...) em comparação com o volume, (...)”, “Cabe aqui (...)”, “(...) do resto do corpo (...)”, “(...) na minha mão”, “(...) tremulavam desamparadas (...)”, “Na minha mão”, “(...) diante dos seus olhos.”, “Quando quer comer bichinhos”, “– O que aconteceu comigo?”, “Com seus pezinhos”, “– O que aconteceu comigo? – pensou.”, “Ele cisca o chão.”